Poupem as lágrimas apressadas pela decisão da Suprema Corte americana de não analisar o caso de repórteres do New York Times e da revista Time que se negam a identificar fontes. Em primeiro lugar, os jornalistas (em geral) já estão bem crescidinhos, podem abrir mão do privilégio, suposto direito, de ‘proteger a identidade das fontes’ a pretexto de estar em causa a liberdade de imprensa (não está).
Em segundo lugar, cada vez são maiores as deformações resultantes desse tipo de ‘proteção das fontes’. Desculpem-me os colegas jornalistas, mas prefiro comparar o recurso àqueles acordos espúrios de promotores com mafiosos. Para mim foi obsceno um destes – Sammy the Bull, executor confesso de mais de duas dezenas de pessoas – ganhar outra identidade, nome novo e operação plástica para testemunhar contra o chefão John Gotti.
Um efeito colateral do acordo indecente foi revelado recentemente. O beneficiário, tão criminoso como Gotti, montou operação milionária no estado do Arizona, onde tinha o monopólio do tráfico da droga Ecstasy. Agora responde de novo na Justiça pela renovada carreira criminosa, cortesia do contribuinte. E seus crimes anteriores – assassinatos brutais – continuam impunes graças aos tais programas de proteção de testemunhas.
Circulando na cúpula do poder
É hora de rever a proteção às fontes anônimas. Antes já não se justificava. Agora é a causa de uma praga do jornalismo – em especial depois do escândalo de Watergate e do personagem Deep Throat. Muitos episódios recentes, entre eles o do insider que passou informações à CBS sobre os crimes da indústria de cigarro, mostram que os criminosos usam mais a imaginação do que a mídia, meio parada no tempo.
Além disso, há modalidades diversas de fontes anônimas. Há pessoas que praticam ou praticaram crimes e não têm por que receberem proteção – ao contrário. Existem os envolvidos em corrupção, freqüentemente beneficiários de corrupção, que aderem à denúncia sob a proteção do anonimato, na busca obstinada da impunidade, sem excluir desdobramento posterior com livro-bomba e status de herói e celebridade.
A situação mais comum é precisamente a que agora envolve Judith Miller, do New York Times, e Matthew Cooper, da revista Time. Por circularem nos corredores do poder em Washington, costumam ser premiados com vazamentos. A escolha é menos por serem profissionais competentes ou honestos, ou por produzirem texto de qualidade, ou pela capacidade de análise. São eleitos por se prestarem a manipulação.
Mera receptadora de plantão
O caso de Miller, como tenho repetido nesta coluna, é um escândalo para figurar na história do jornalismo. Qualquer alta autoridade inclinada a atemorizar o país e o mundo com mentiras irresponsáveis para obter certos efeitos parece contar com a ajuda dela. Miller prestou-se a papel melancólico especialmente na veiculação das informações fraudulentas sobre as armas de destruição em massa (AMD) do Iraque.
Tudo isso foi amplamente documentado, levando o New York Times a embaraçoso pedido público de desculpas. Mas o jornal – que antes tinha demitido Jayson Blair, cujos textos levianos não tinham contribuído para produzir uma guerra – optou por preservar Miller no mesmo status de receptadora de plantão dos vazamentos oriundos do mais alto escalão do governo Bush, que se encantou com a leviandade dela.
A suposição natural é de que não foi punida porque tinha o cuidado de obter aprovação prévia da cúpula da redação. Mas o caso dela é alarmante se for levado em conta que até se irritou com a crítica de um colega de jornal aos textos sobre AMD. Vangloriou-se então de ter como sua fonte, durante anos, o criminoso e irresponsável Ahmed Chalabi, banqueiro falido que o Pentágono obstinava-se em instalar no trono de Saddam Hussein.
Miller faz pose de vítima e heroína. Não é uma coisa e nem outra. Basta lembrar detalhes do caso. Num discurso do Estado da União, o presidente George W. Bush contou a lorota de que o Iraque tinha tentado comprar urânio enriquecido em Níger, África, para uma bomba nuclear. O ex-embaixador Joseph Wilson, que esteve lá, provou então (em artigo para o próprio Times) que a informação era fraudulenta.
Vazamento não é apuração
Numa operação de vingança da Casa Branca, altas autoridades do governo vazaram a jornalistas amigos (entre os quais Miller) a informação de que a mulher de Wilson, Valerie Plame, era agente da CIA. Identificar agentes é crime, por isso abriu-se inquérito para apurar e punir os responsáveis. Miller sequer dera a informação (saída na coluna de Bob Novak, amiguinho da Casa Branca) mas negou-se a identificar a fonte.
Alega a falsa heroína: ‘Jornalistas simplesmente não podem fazer seu trabalho se não puderem assegurar às suas fontes que elas não serão identificadas’. Eu diria, em bom inglês americano: ‘Bullshit!’ Bons jornalistas têm de repelir o privilégio, usado para servir ao poder. Ampliar as fontes anônimas compromete a qualidade da informação levada às pessoas, favorece o pior jornalismo.
Se para qualquer cidadão o correto é testemunhar, ao saber de um crime, por que deve ser diferente para jornalistas – em especial privilegiados que circulam na cúpula do poder, em princípio suspeita? O bom profissional deve ter seus meios de apurar a verdade. Pode eventualmente usar o reforço de uma ou outra fonte anônima mas sem se limitar a elas e sem compromisso de proteger criminosos. Vazamento privilegiado, aliás, não dignifica a profissão. Sequer é apuração.
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Jornalista