Basta dar uma olhada no noticiário internacional, notadamente o oriundo de agências de notícias, bem como aqui e ali mesmo em comentários voltados para questões de política interna, para vermos o quanto os grandes meios de comunicação brasileiros estão na maior parte preocupados em propagar uma imagem negativa do presidente venezuelano Hugo Chávez. Imagem por vezes preconceituosa e desinformada, mas principalmente fabricada adrede, com intenção corrosiva. Não há como não perceber uma central de mistificação irradiando sistematicamente pelo continente latino-americano contrapropaganda enganosa, e não notícias, sobre o governo venezuelano e seu líder maior.
O estado de Pernambuco, depois de décadas de tentativas, acaba de ser contemplado com a instalação de uma refinaria de petróleo, a ser implantada em consórcio pela Petrobras e Petróleos de Venezuela S/A (PDVSA). Num estado periférico à economia nacional e pouco industrializado, a nova planta fabril, pela sua dimensão e pelas externalidades que propiciará, terá um impacto extraordinário na economia local. Já se diz que a economia pernambucana se dividirá entre antes e depois da refinaria. A federação que representa os industriais do estado (Fiepe) está exultante. As centrais sindicais e os sindicatos de trabalhadores e a população em geral, idem. As autoridades estaduais e municipais da área metropolitana do Recife, mais ainda.
O presidente Hugo Chávez já veio três vezes a Pernambuco, terra pela qual tem carinho especial por ser o berço e onde está o túmulo do general Abreu e Lima, um dos Libertadores das Américas, profundamente vinculado à história venezuelana. Aqui teve sempre um trato franco, afável e descontraído com todos. Pretende vir novamente para lançar a pedra fundamental da refinaria, com o presidente Lula e o governador do estado, Jarbas Vasconcelos.
Versão ideológica
Num clima destes, por respeito e gratidão, era de se esperar dos jornais locais um tratamento cuidadoso – para garantia de correção – do presidente Chávez e seu governo. Não custa pedir a um editor de política que busque fontes confiáveis – abundantes, por exemplo, na internet – antes de redigir suas matérias sobre a Venezuela. Que desconfie dos despachos das agências de notícias, nacionais e internacionais, hegemonizadas pelos interesses geoestratégicos do governo norte-americano. Infelizmente, não é bem assim que as coisas vêm acontecendo.
Vejamos um exemplo: em meio ao seu noticiário sobre a confirmação da refinaria de petróleo em Pernambuco, na edição do dia 30 de setembro, o Jornal do Commercio do Recife publicou, na página 4 do caderno de Economia, matéria assinada pelo jornalista Renato Lima sobre a empresa de petróleo venezuelana, intitulada ‘PDVSA é a quarta maior empresa petrolífera do mundo’, na qual, em meio a informações no geral corretas, fazem-se interpretações desprovidas de base factual.
São duas tais interpretações, a dificultarem a boa compreensão do leitor do momento especial por que passa a economia pernambucana, do significado da vinda da PDVSA ao estado, bem como da política externa do governo Lula, a grande responsável pela atração da refinaria. A primeira é a de que ‘o presidente Chávez politizou a administração da estatal’. O autor, inclusive, cita em apoio ao seu raciocínio o professor Adriano Pires, da UFRJ: ‘O presidente da Venezuela passou a tratar a empresa mais como um braço político do que como uma empresa de petróleo’. Tal como está, o texto, neste ponto, afasta-se da análise objetiva dos fatos e envereda por uma versão ‘ideológica’ (no mau sentido) impregnada pelos cânones do neoliberalismo e da propaganda política antichavista em toda a América Latina. ‘Politizar’ aparece aqui como sinônimo de partidarizar. A PDVSA teria deixado de atender aos seus corretos objetivos para servir aos interesses estreitos do grupo político do ocupante da presidência da República. Nada mais distante do real.
Perigosa meia-verdade
Na verdade, o presidente Hugo Chávez repôs a PDVSA, estatal, no seu leito legítimo de empresa pública, de caráter nacional, destinada ao serviço universal dos interesses nacionais do povo venezuelano. Até a grande greve que a paralisou em dezembro de 2002 e início de 2003, montada e dirigida dos bastidores pela oposição reacionária e conservadora e pelo Departamento de Estado norte-americano, a empresa estava privatizada pelos seus gerentes e chefes subalternos, vinculados à oligarquia sociopolítica, que não eram nomeados em cadeia hierárquica pelo governo federal, não submetiam nem prestavam contas de seus atos às instituições representativas da República, como o Congresso Nacional e a presidência, e apoderavam-se privadamente dos lucros da empresa, deles o povo muito pouco se beneficiando. O governo desconhecia o montante, a diversidade e os rendimentos dos seus investimentos no exterior, por exemplo.
Agora, pela primeira vez em muito tempo, os lucros da PDVSA estão sendo aplicados na reversão da difícil situação social do povo venezuelano, principalmente em ações de saúde e educação. A administração da empresa não foi ‘politizada’ no sentido de partidarizada, até porque só na cartilha ideológica do neoliberalismo é que ‘político’ se reduz a partidário e se opõe à racionalidade econômica. A PDVSA hoje é uma empresa politizada no sentido de ser pública e ter seu desempenho econômico voltado, de um lado, para a eficiência empresarial e, de outro, para o benefício dos interesses de todo o povo e da nação venezuelana, e não de uma minoria parasitária. Até que o governo legitimamente eleito, reeleito e confirmado do presidente Chávez tomasse nas mãos suas rédeas, ela era um apêndice da oligarquia sociopolítica, que irrigava seus negócios com o dinheiro da receita do petróleo. E aqui cabe raciocinar ao revés: privado não quer dizer eficiente e a privatização da empresa nacional venezuelana foi uma politização pelos setores privilegiados da nação, cujo desprezo histórico por seu povo é simplesmente enorme e, talvez, sem paralelo no continente.
A segunda interpretação equivocada é a de que ‘durante uma greve geral convocada pela oposição (…) Chávez aproveitou para substituir vários trabalhadores oposicionistas por diretores e gerentes alinhados ao seu projeto político.’ Esta é o que chamaríamos uma perigosa meia-verdade, porque dá um viés irreal a fatos reais. Como está formulada, a afirmação dá idéia de um golpe oportunista aproveitando uma situação de vulnerabilidade dos substituídos. Não é o que ocorreu, como sabe qualquer um que acompanhe a realidade venezuelana nos últimos anos. Durante os governos anteriores, a PDVSA fora tendo seu controle monopolizado por uma tecnocracia gerencial, apoiada numa idéia particular de meritocracia, e convertendo-se, nas palavras da historiadora venezuelana Margarita López Maya (Revista del Osal, nº 9, enero de 2003), ‘em um Estado dentro do Estado’, formulando autonomamente sua política petrolífera. Resultado: perda de receita fiscal pelo Estado e de eficiência pela companhia.
Simplificação
Quando o governo Chávez procurou sanar esta situação, ainda antes do chamado ‘paro cívico’, a oligarquia em que se havia constituído o corpo de gerentes e chefes subalternos da companhia partiu para a rebelião aberta, que terminou por se transformar em greve que se somou à paralisação geral, para a qual contribuiu sobremaneira. A hierarquia de mando da PDVSA não admitia – pasmem! – submeter-se às decisões dos donos da companhia, o povo, representado pelo governo à frente do seu Estado democrático. O governo não poderia – imaginem! – exonerar e nomear os cargos de confiança da empresa. Um exemplo disparatado de esquizofrenia política! Constituíram um movimento chamado Gente do Petróleo com o fito de ‘detonar’ Chávez e, a partir de certo momento, desconhecer a autoridade do Estado e a nação. A demissão de milhares de funcionários da estatal tornou-se inevitável, sob pena de o Estado perder sua autoridade, o controle da sua galinha dos ovos de ouro em prejuízo do povo e em benefício das oligarquias, e abdicar da garantia do usufruto coletivo de uma riqueza pública nacional.
Basta pensar que a PDVSA é maior que a Petrobrás, além de ser a segunda maior empresa exportadora de petróleo para os Estados Unidos, num país de 912.050 km² e 25 milhões de habitantes, algo como o estado do Mato Grosso com a população do estado do Rio de Janeiro. Cem anos após o início da exploração petrolífera no país, era de esperar que, com uma farta receita de exportação, a Venezuela tivesse uma economia pujante, diversificada e sua população nadasse em bem-estar. Mas a nação pouco viu dos rendimentos auferidos ao longo das décadas, ao ponto de mais de 60% de seu povo ser pobre ou miserável. O governo Chávez teve a ousadia de partir para mudar este panorama.
Por outro lado, não se pense que demitir milhares de funcionários qualificados foi um ato fácil. Por conta inclusive das práticas oligárquicas pretéritas no poder de Estado, não havia no país força de trabalho qualificada suficiente para repor os demitidos, e por isso, a empresa teve que contratar parte do novo contingente de trabalhadores no exterior. Gente profissional, sem vínculo político com o chavismo. Portanto, não se tratava simplesmente, como diz o texto do jornal, de ‘substituir vários trabalhadores oposicionistas por diretores e gerentes alinhados ao seu (de Chávez) projeto político chamado de revolução bolivariana’. Na verdade, estava em curso um reordenamento empresarial consoante com um objetivo maior, de significado nacional.
A população pernambucana merece maior objetividade no noticiário da imprensa local.
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Sociólogo, secretário-executivo do ObservaNordeste