Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Loas ao boom do agronegócio

No início de 2004, embevecida no seu último mantra – tecer loas ao boom do agronegócio tupiniquim –, a mídia brasileira em coro espalhou a quase certeza de que o Brasil estava prestes a ultrapassar os Estados Unidos na produção de soja. Em dois ou três anos seríamos campeões do mundo. A liderança nas exportações já fora conquistada desde 2003.

Foi então que entrou areia no negócio. Primeiro, uma combinação de seca no Sul e chuvas no Centro-Oeste anulou a anunciada supersafra recorde. Em seguida uma praga vinda da Ásia ameaçou um estrago que só não se consumou devido ao emprego maciço de muito fungicida.

Mais interessada em repercutir o debate sobre a legalização dos transgênicos no Brasil, a imprensa registrou burocraticamente a ocorrência da ferrugem asiática nas plantações de soja – como se fosse simplesmente mais uma entre tantas doenças que todo ano enchem o saco dos agricultores. Na realidade, trata-se de uma praga fulminante que, não sendo combatida com eficácia no momento em que aparece, pode liquidar com uma lavoura no prazo de uma semana. O fungo Phakopsora pachyrhizi ataca as folhas, provocando manchas marrons que acabam secando a planta, seja orgânica ou transgênica. ‘Eu nunca vi uma doença fazer estrago tão grande e tão rapidamente’, disse um experiente piloto agrícola, que tem razões de sobra para se manter no anonimato. ‘É como se tivessem aplicado um dessecante químico na plantação’.

Para aplicar fungicidas no combate à novíssima praga, os agricultores empregam um exército de tratores e aviões agrícolas. Uma aplicação de veneno antiferrugem asiática custa 130 dólares por hectare – na última safra o Brasil plantou 20 milhões de hectares de soja. E só uma aplicação não basta. São necessárias pelo menos três aplicações para minimizar o mal. Houve, portanto, um encarecimento brutal dos custos de produção.

Tudo isso acabaria mais ou menos bem para os agricultores se continuasse ventando a favor no mercado internacional. Não foi o que aconteceu.

Mal acabou a safra de soja, a rainha do agribusiness brasileiro levou um tombo na Ásia. Em maio os importadores chineses começaram a devolver cargas e cargas de soja brasileira sob a alegação de que os grãos estavam contaminados por agrotóxicos. Fungicidas, com certeza. Mas ninguém – ninguém! – na mídia ligou uma coisa a outra. Por que?

O drama da maioria dos agricultores não aparece na mídia por uma razão simples: os repórteres não vão à zona rural e costumam basear-se em ‘fontes do mercado’. Se nem às ruas das cidades vão os repórteres hoje em dia, muito menos ao campo.

A cobertura da imprensa à devastação da ferrugem asiática foi burocrática porque seus redatores informam-se em releases da indústria química ou dos centros de pesquisas, cujos técnicos dependem de financiamentos de empresas que exploram o mercado agrícola. Afinal, a agricultura brasileira usa e abusa da tecnologia desenvolvida nos Estados Unidos. E nisso acabou se tornando vulnerável comercialmente. As redações refletem esse círculo perverso, deixando-se pautar diretamente pelo departamento comercial, aceitando a influência deletéria dos marketeiros, engolindo as pílulas douradas das assessorias de RP ou submetendo-se sem resistência à maneia direta dos patrões. Repórter que tem histórias reais para contar não recebe encomenda da mídia.

Custos dobrados

Depois de passar quatro meses trabalhando em Goiás, nosso amigo piloto agrícola voltou para casa no Sul com a leve suspeita de que o fungo da ferrugem asiática pode ter sido introduzido nas lavouras brasileiras pela própria indústria química, interessada em ampliar seu mercado no Brasil. Ele não afirma, mas desconfia. Há também quem diga que a praga seja parte de uma ofensiva bioterrorista dos Estados Unidos para diminuir a competitividade da soja brasileira. Paranóia?

No ano passado o Ministério da Agricultura do Brasil denunciou a presença de um técnico norte-americano que colhia amostras de soja em Barreiras, no oeste da Bahia, onde a ferrugem asiática atacara de surpresa, provocando uma quebra de 25% na safra regional de soja de 2003. A embaixada americana entrou em ação e mandou o cara de volta para os Estados Unidos. A desculpa foi que o sujeito estava colhendo dados que permitissem fazer uma comparação entre o fungo da ferrugem asiática e o da ferrugem americana, presente nas lavouras dos Estados Unidos há vários anos, sem maiores conseqüências. Pelo sim, pelo não, todo mundo ficou de orelha em pé.

A suspeita de sabotagem faz sentido porque a ferrugem asiática deu um baita impulso à indústria química, que até o ano passado faturava 2,6 bilhões de dólares anuais no Brasil. Os fungicidas, produzidos quase todos com matérias-primas importadas, são os itens mais caros do arsenal de produtos químicos manipulados pelos agricultores.

Em conseqüência da ferrugem asiática os custos de produção de soja subiram enormemente. Em Santa Catarina, em abril, o custo oficial de um hectare de soja estava em 1.381,94 reais, sendo 603,89 reais de insumos (químicos, principalmente), o que representa mais de 40% do custo total. Tomando por base de cálculo um rendimento médio de 2.700 kg/ha, isto significava um custo de 30,71 reais por saca de 60 kg. Nos anos anteriores, no mesmo mês, os custos por saca foram 25,44 reais em 2003, 18,65 reais em 2002 e 16,06 reais em 2001. Quer dizer, dobrou em quatro anos.

Ganância mercadológica

O resultado do encarecimento da produção da soja é que os pequenos agricultores tendem a ser alijados dessa lavoura, altamente mecanizada e dependente dos chamados insumos modernos, isto é, os agrotóxicos. A previsão é que somente os grandes ficarão na atividade. Há uma concentração em marcha. E novamente ninguém na mídia liga uma coisa a outra: a ‘modernização’ do campo reforça o êxodo rural que alimenta o inchaço urbano que engrossa o exército de desempregados que acabam indo cair na rede do MST.

A soja é uma lavoura tremendamente capitalista. Se por um lado enriquece os agricultores mais arrojados, expulsa do campo os que não têm acesso aos modernos meios de produção. Na prática, continua prevalecendo o velho modelo dualista da agricultura brasileira. Na vanguarda, os exportadores. Na retaguarda, todos os outros.

A única novidade da história é que a ferrugem asiática rompeu o ciclo de superprodução dos últimos quatro anos e colocou a cultura da soja (e a agricultura em geral) numa encruzilhada. Os agricultores brasileiros não podem mais continuar plantando soja do mesmo jeito. Terão de fazer rotação de culturas, como recomendam os agrônomos. O plantio de cereais, especialmente o milho, nas terras usadas pela soja, é a medida mais prática para ‘quebrar o ciclo’ de pragas que se fortalecem quando se cultiva soja sobre soja, um ano após o outro.

Em outras palavras, pode-se dizer que foi a ganância mercadológica dos agricultores (e de seus parceiros na cadeia do agronegócio) que abriu espaço para a proliferação da ferrugem asiática. Resta ver seu comportamento no próximo ano agrícola, que está começando agora, quando todo mundo decide o que vai plantar na esperança de colher em abril-maio de 2005.

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Jornalista