Ser jornalista de conflitos e situações de risco para muitos soa como loucura. Afinal, porque estar em um local de guerra, onde o risco de morte é iminente? Porque estar em territórios onde não se é bem-vindo, em uma época de prisões, sequestros e decapitações?
Os números também corroboram esse questionamento. De acordo com dados do Comittee to Protect Journalists (CPJ), organização sem fins lucrativos que promove a liberdade de imprensa ao redor do mundo, 1211 jornalistas foram mortos desde 1992, sendo que apenas em 2016 já ocorreram 31 casos, sendo a mais recente a do fotojornalista holandês Jeroen Oerlemans, morto com um tiro no peito por um sniper do intitulado Estado Islâmico, em Sirte, cidade síria, no início deste mês. Estas 1211 mortes são classificadas em 3 tipos, sendo 66% assassinatos, 21% em combate ou fogo cruzado e 13% em tarefas perigosas. O país que lidera o ranking é o Iraque, com 171 jornalistas mortos.
José Hamilton Ribeiro, um dos pioneiros neste tipo de cobertura jornalística no Brasil e que cobriu a Guerra do Vietnã (e como consequência teve sua perna esquerda arrancada por uma mina terrestre), em seu clássico O Gosto da Guerra [RIBEIRO, José Hamilton Ribeiro. O Gosto da Guerra. Coleção Jornalismo de Guerra. Editora Objetiva. 2005. 129 p.], talvez responda essa questão, ao escrever que “guerra é ruim, mas guerra sem alguém escrever sobre ela é muito pior”.
Mas desde a Guerra do Vietnã a cobertura jornalística mudou muito. De acordo com Igor Fuser [Entrevista com Igor Fuser, jornalista e professor universitário (16 nov. 2016)], professor de Relações Internacionais que trabalhou mais de vinte anos na chamada “grande imprensa” (Folha de S.Paulo, Veja, Época) e deu aulas de técnicas de reportagem durante 15 anos na Faculdade Cásper Líbero, as diferenças são radicais. Segundo o professor, hoje em dia os conflitos já não ocorrem entre dois exércitos regulares, mas geralmente envolvem de um lado um exército regular e, do outro, forças insurgentes, rebeldes, às vezes qualificadas como “terroristas”. Ele prossegue: “Essa circunstância diminui em muito a segurança dos jornalistas, que raramente podem circular pelas regiões conflagradas sem a proteção das forças militares de um governo, local ou externo.
Também não existem mais linhas de combate claramente delimitadas, aquilo que antigamente se chamava o front. As operações militares em geral são realizadas à distância, por meio do lançamento de mísseis e de bombardeios aéreos. O papel dos jornalistas se limita, assim, a verificar os escombros, entrevistar feridos, refugiados e se fazer presentes a burocráticas entrevistas coletivas de porta-vozes militares, já que de um modo geral os combatentes são proibidos de falar à imprensa. A cobertura de guerra é uma cobertura fria, feita à distância, de tal modo que raramente se obtêm informações relevantes a serem compartilhadas com os leitores.”
Trabalhar com discrição
Mesmo com todo o perigo e este novo panorama, ainda há jornalistas e fotógrafos que se arriscam para trazer a informação e mostrar o que ocorre nos conflitos armados e com os envolvidos, incluindo os soldados e toda a população civil que sofre com as consequências. Graças a estes profissionais imagens e histórias como a do menino Omran Daqneesh, criança de cinco anos retirada de escombros após um bombardeio e um dos símbolos da Guerra na Síria, correm pelo mundo rapidamente, e mesmo que não impactem diretamente no conflito, permitem com que ao menos alguns olhos se voltem para o sofrimento local.
Marcelo Torres [entrevista com Marcelo Torres, repórter e apresentador do SBT (15 out. 2016)], repórter e apresentador do SBT, é um destes portadores de seguro de vida de alto risco. Ele possui várias experiências em coberturas de guerras e conflitos armados, tendo feito o trabalho in loco em diversos países, como Líbia, Iraque, Colômbia e Afeganistão. Em algumas destas viagens trabalhou em conjunto com organizações humanitárias, como com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Em outras, cobriu as hostilidades como embedded (incorporado) no Exército norte-americano, situação onde o repórter é incorporado junto com as tropas, tendo uma visão interna do conflito por um dos lados. Para ele, a figura de um correspondente de guerra é muito importante, “porque é uma chance que temos de cobrir algum fato com o olhar brasileiro de maneira que passe a realidade para a gente, não só com o filtro americano e europeu”.
Torres afirma que ser brasileiro sempre colaborou positivamente para seu trabalho, facilitando as relações nas zonas de guerra, pela nacionalidade ser considerada de “boa gente” e pelo Brasil ser pacífico, não estando envolvido em grandes conflitos. Em contrapartida, pelo país não ter tradição em mandar muitos correspondentes e pelos grupos de mídia brasileiros não terem tanto alcance e reconhecimento mundial, Torres explica que o trabalho do jornalista brasileiro não conta com as facilidades das grandes redes, que acabam tendo mais acesso, com portas sendo abertas mais facilmente. Mas até isto, na opinião do jornalista, acaba se tornando um ponto positivo, na medida em que ele diz preferir nas coberturas de guerra trabalhar com um low profile (com discrição), sem chamar muita atenção e sem ser taxado pertencente a mídia britânica e norte-americana, o que pode representar maiores riscos. Torres viveu esta experiência menos chamativa ao menos em duas oportunidades, uma no Iraque, onde atuou sozinho e com baixo orçamento, e no Egito durante a Primavera Árabe, quando atuou com câmeras escondidas e sem se identificar como jornalista no meio da Praça Tahrir, principal front dos conflitos.
Uma pitada de falta de juízo
Fuser, por sua vez, critica tanto as coberturas realizadas por jornalistas brasileiros quanto pelas grandes redes europeias e estadunidenses. Para ele, as grandes redes, como a CNN e a BBC, realizam coberturas oficialistas, que adotam como ponto de partida o compartilhamento da posição e perspectiva de um dos beligerantes – geralmente os Estados Unidos ou algum outro país integrante da Otan. Ele também afirma que a “superficialidade e o maniqueísmo caracterizam essas coberturas. O público quer emoção, ação, mas isso raramente é possível nas condições reais do combate moderno. A televisão se resume, assim, a mostrar aviões decolando, mísseis voando, ou explosões a grande distância. O máximo que se consegue é entrevistar feridos e refugiados”.
Sobre a cobertura brasileira o professor também estende suas críticas. De acordo com ele, quando ocorre de algum veículo enviar um jornalista para um cenário de guerra, é uma grande fraude. Se já é difícil o acesso ao teatro de operações dos repórteres de Primeiro Mundo (norte-americanos, franceses, ingleses), a serviço de empresas de mídia cuja cobertura realmente interessa aos comandos militares ocidentais, aqueles que têm o poder de decisão sobre a capacidade de deslocamento dos repórteres ao teatro de operações, no caso de jornalistas do Terceiro Mundo, como os brasileiros, a guerra propriamente dita fica a anos-luz de distância: “Resta a eles fingir que estão próximos a situação de perigo, de ação, fazer um teatro fingindo que estão presentes em algo relevante e assim engambelar leitores e espectadores. Muito blá-blá-blá sem sentido, análise zero e uma pobreza total de imagens, fotos e situações reveladoras, interessantes ou relevantes. Uma farsa. De vez em quando algum desses enviados especiais tem a sorte de ser capturado por alguma força insurgente ou beligerante, o que permite esquentar um pouco o noticiário. Depois, quando são libertados, apresentam relatos exagerados sobre sua experiência e são tratados como se fossem heróis, o que é mais uma grande mentira”, finaliza.
Sobre a relação com os entrevistados nas situações de conflito, Torres afirma que explica bem seu papel antes de realizar seu trabalho, ao mesmo tempo que elucida a importância do depoimento. Ele prossegue: “Deixo claro para as pessoas que a gente não faz mágica. Eu sempre falo da importância de que estas histórias sejam contadas, para ajudar aqueles que estão na mesma situação. Talvez o depoimento não vá mudar a vida, mas vai servir de exemplo e de força para pessoas que estão passando pelo mesmo.”
Respondendo a pergunta do título, sobre ser louco ou herói, a resposta mais próxima da correta talvez seja um misto dos dois. Como bem explica novamente José Hamilton: “O que leva um jornalista a uma cobertura de guerra ou a uma situação de perigo, um pouco é vaidade; um pouco é espírito de aventura; um pouco é ambição profissional; e muito, mas muito mesmo, é a sensação, entre romântica e missioneira, de que faz parte de sua vocação estar onde a notícia estiver, seja para ali atuar como testemunha da história, seja para denunciar o que estiver havendo de abuso de poder (político, psicológico, econômico, militar), seja para açoitar a injustiça, a iniquidade e o preconceito. Após tudo isso, uma pitada de falta de juízo.”
Riscos nem sempre estão nas guerras
Embora o noticiário esteja repleto de notícias de sequestros e mortes de jornalistas em países do Oriente Médio, muitos casos acontecem também em países onde não há uma guerra existente, ao menos declarada. Este é o caso do Brasil. No ranking do CPJ de países com maior número de jornalistas mortos desde 1992, o Brasil está no décimo lugar, com 39 mortos, a frente de países que passaram por duros conflitos armados, como o Afeganistão.
Os casos estão majoritariamente ligados a investigações jornalísticas sobre temas que envolvem corrupção, crime organizado e política, como o assassinato de Tim Lopes em 2002. Além disto, nos últimos anos tem crescido os casos de violência em protestos, como o que culminou na morte de Santiago Andrade, cinegrafista da Rede Bandeirantes atingido por um rojão na cabeça. Também merece atenção o aumento do número de casos de jornalistas que relatam abuso por parte das forças policiais nestas situações, cerceando o direito de liberdade do trabalho da imprensa.
Sobre estas mortes de jornalistas brasileiros, Fuser coloca que elas ocorrem, invariavelmente, em regiões distantes do interior do país, dominadas por oligarcas que não aceitam críticas nem denúncias. E prossegue: “Essas mortes, quase sempre, são causadas por pistoleiros a mando de latifundiários ou de chefes políticos locais, de grileiros de terras, de bandidos que extraem madeira ou minérios ilegalmente. Em geral, esses crimes ficam impunes e não são nem sequer noticiados pela mídia dos grandes centros”.
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Matheus Guchilo é estudante de Relações Internacionais e atualmente participa do 15º Curso de Informação sobre Jornalismo em Situações de Conflito e outras Situações de Violência, do projeto Repórter do Futuro