“Barriga” do ano, dizemos nós. “Tremendo error” acusa Tomàs Delclós, o “defensor del lector” (ouvidor, ombudsman).
“Una de las mayores equivocaciones de su historia”, admite o próprio El País na capa da edição de domingo (27/1). A dramática matéria de duas páginas com os pormenores, minuto a minuto, do espetacular fiasco teve um título destinado a entrar para os anais da autoflagelação e autocrítica: “El gran patinazo”, a grande derrapagem.
A falsa foto de Hugo Chávez entubado publicada na capa da edição da quinta-feira (24/1) não pode ser interpretada como um novo revés da mídia impressa. Ao contrário: é mais uma demonstração dos embustes e engodos que circulam e envolvem a rede mundial de computadores.
Os 37 anos de uma incomparável história de sucesso jornalístico e empresarial protagonizada pelo “periódico global en español” foram maculados não por uma desgraçada decisão, mas por uma incrível e arrastada indecisão.
Apesar da firmeza e presteza com que o jornal logo depois procurou interromper e reparar a divulgação da falsidade assumindo plenamente todas as responsabilidades, ficou registrada uma indelével e inadmissível vacilação. Vacilo, como dizem os nossos jovens.
História inverossímil
A partir da legenda da foto falsa até o relato do trágico suspense que a antecedeu [ver remissões abaixo] flagrou-se uma hesitação impensável, um espantoso titubeio num organismo que deveria estar firmemente amarrado por convicções seminais.
A premissa elementar que rege o processo decisório de um veículo jornalístico é que a sua credibilidade não pode ser colocada em risco. Ponto. Sob nenhuma hipótese. Ponto de exclamação.
Assumido este compromisso crucial, ontológico, torna-se mais fácil lidar com qualquer das dúvidas, desafios e, sobretudo, as infernais tentações do dia a dia.
A ausência do diretor de Redação, Javier Moreno – naquele momento em Davos, Suíça, acompanhando o Fórum Econômico Mundial –, contribuiu de alguma maneira para amaciar o dogma intocável. A cadeia de comando do El País funciona impecavelmente e não poderia ser diferente num jornal construído para ostentar um padrão contínuo de qualidade em todas as edições, páginas e secções.
Faltou, porém, logo no início do episódio, o murro na mesa destinado a dissolver, de saída, as primeiras dúvidas e consolidar certezas. Isso se comprova quando no meio da tarde da quarta (23/1), o diretor-adjunto Vicente Jimenez faz uma videoconferência pelo Facetime com o seu superior, Javier Moreno:
– Temos a foto de uma pessoa que parece Hugo Chávez em um centro cirúrgico. Está sendo oferecida por uma agência e estamos fazendo gestões para consegui-la porque primeiro foi oferecida a El Mundo [principal competidor, de tendência claramente conservadora].
– O que sabemos desta fotografia? – pergunta Moreno, experimentado jornalista, professor de jornalismo, químico de profissão, figura firme e tranquila.
Neste exato momento, e a partir da inocente pergunta, começa a fatal sucessão de erros: o prudente diretor caíra na armadilha da competição. O ardiloso vírus da disputa concorrencial trincou a cláusula pétrea da credibilidade. Moreno fascinou-se com o produto, sem se importar com as suspeições que o envolviam.
– Não entramos neste tipo de leilão, mandem a Gtres Online [nome da agência vendedora] enfiar a foto no… – teria dito o mesmo Javier Moreno se fosse dado a este tipo de imprecação e não estivesse a cerca de mil e quinhentos quilômetros da redação.
Aparentemente, os negociadores do El País não sabiam que o concorrente desistira do negócio. Mas sabiam – sem estranhar – que a agência vendedora da foto havia feito uma redução de 50% no preço do trambique (de 30 mil para 15 mil euros).
Pechincha dessas proporções é gritantemente suspeita, comprometedora. Coisa de embusteiro. A direção do diário também não desconfiou quando a agência ofereceu alguns dados sobre a foto: fora tirada por uma enfermeira cubana, enviada por e-mail à sua irmã, moradora na Espanha, que, por sua vez, procurou uma amiga que colaborava na agência.
Um estagiário recém-admitido no poderoso rotativo Voz de Cabrobó dos Matos teria percebido que o relato não se sustentava: uma enfermeira em Cuba – um estado policial – conseguiria entrar na sala de cirurgia ou UTI com uma câmera ou celular para fotografar o paciente mais vigiado do mundo e escapar incólume? Nem em filme de James Bond.
Imagem fajuta
Como exercício dialético, imagine-se agora se a foto fosse verdadeira: El País poderia badalar o furo de reportagem ou teria que admitir que comprou a foto na feira de bugigangas digitais? E o que aconteceria 24 horas depois de publicada a façanha? Além das congratulações de leitores bajuladores, matérias autogratulatórias, promessas de prêmios e outras mundanidades durante um par de dias (a fama tem vida curta também no segmento de jornais), qual seria a efetiva contribuição da foto para acabar com o secretismo que envolve a cirurgia na “região pélvica” do caudilho bolivariano?
Que interesse para o leitor e para a opinião pública teria a publicação da penosa foto de um líder político visivelmente sofrido, anestesiado e entubado num hospital? Se o paciente estivesse morto – ao contrário do que apregoa o governo venezuelano – a foto verdadeira teria um valor informativo. Mas estando vivo e a foto, verdadeira, constituiria uma clara invasão de privacidade.
Se o desafio jornalístico era questionar a cortina de silêncio em torno da saúde de Hugo Chávez (protegido há dois meses num bunker hospitalar cubano), existe pelo menos uma dúzia de opções menos arriscadas, mais legítimas e jornalísticas.
O erro maior dessa incrível coleção de infelicidades foi o de não mostrar a foto falsa ao correspondente em Caracas, Ewald Scharfenberg, por receio de que a conexão fosse interceptada pelas autoridades venezuelanas. Ou por concorrentes. Recomendaram apenas que ficasse atento às reações do governo porque preparavam algo importante.
Se a imagem fosse mostrada ao experimentado correspondente ele teria negado prontamente a sua autenticidade, como de fato o fez, quando já era demasiado tarde: a versão online do jornal já estava na rede e o jornal rodando (inclusive em São Paulo, onde se imprime a edição “brasileira”). Na verdade não se tratava de uma foto, mas do frame de um vídeo de 3m39s que rolava na web havia vários dias, já conhecido na Venezuela e sem qualquer sinal de legitimidade ou veracidade.
Sentimento trágico
Moral da história: a internet é uma rede de comunicação, ferramenta de busca, arquivo de dados, não um veículo jornalístico. Ponto. É uma selva onde convivem grandes, médios e pequenos predadores, igualmente empenhados em ludibriar. Ponto de exclamação.
Há na web blogs, sites e portais que obedecem estritamente aos preceitos do bom jornalismo. A agência Gtres Online, acompanhada por milhões de cúmplices, não faz parte deste grupo. Estão no negócio do vale-tudo e da rapinagem.
El País caiu num conto do vigário. Ponto. Seu infortúnio – passageiro, certamente – servirá de lição aos tolos e basbaques que apregoam o triunfo próximo e definitivo do jornalismo cibernético. Ponto de exclamação.
A dignidade com que o jornal enfrenta a adversidade – herdeira do celebrado sentimento trágico da vida – jamais poderia prosperar nas nuvens digitais.
Leia também
Relato de um erro – José María Irujo e Joseba Elola Madrid (em espanhol)
A foto que o jornal nunca deveria ter publicado (em espanhol)
Um erro tremendo – Tomàs Delclós (em espanhol)
O Chávez que não era Chávez – Luiz Egypto