Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

‘Modelo’, conteúdo, forma

É paradoxal que numa série de debates promovida pela revista piauí, de um lado beneficiária de (elogiável) mecenato, portanto nada “paradigmática” como exemplo comercial, e de outro de reconhecida qualidade jornalística, a maioria dos participantes – a julgar pelas perguntas da plateia – tenha se mostrado muito preocupada com “modelos de negócios” e dado sinais de subestimar um pouco a questão primeira de conteúdo & forma. E sobretudo deixado de lado o tema da participação dos internautas no universo do jornalismo digital. A Folha de S.Paulo resumiu no título de reportagem dedicada ao evento: “Festival debate modelos de negócios em jornalismo”.

Ilustração de José Américo Gobbo

Isso dito, a iniciativa, de alta qualidade desde a concepção até a realização, refletiu muito oportunamente a crise que enfrenta a chamada mídia tradicional. Influentes profissionais das redações e de mídia têm convergido na opinião de que os jornais, já lá se vão quase duas décadas, cometeram um erro estratégico ao colocar seu conteúdo gratuitamente na rede.

Nem todos o fizeram, mas bastou que a maioria tivesse seguido esse caminho para corroborar a percepção de que um milagre tecnológico havia reduzido a zero, ou a quase zero, o preço do acesso à informação, ao conteúdo, embora o custo de produzi-lo não se tenha reduzido a zero, mas, muito ao contrário, aumentasse (e continue aumentando) continuamente. Uma verdade hoje aceita universalmente – mas conhecida desde o advento da internet – é que conteúdo repassado gratuita e indistintamente é próximo ou idêntico a lixo midiático.

Custos esquecidos

Transação de valor econômico zero não existe, nunca existiu, nem existirá. O valor pode não ser cobrado, nem discernível à primeira vista, mas existe. Quem disse que você, leitor, não paga para ter acesso à internet? E a banda larga, ou conexão telefônica, dão-lhe de graça? Energia elétrica? E a troca periódica de equipamento por obsolescência? Quem disse que você, ao ter acesso a conteúdo não pago, em qualquer mídia, está recebendo algo “grátis”?

Não, é o contrário: você está dando tempo que o produtor/distribuidor do conteúdo vende para o anunciante. Você paga nessa moeda e na moeda convencional. Isso é explícito na TV por assinatura, que além de cobrar mensalidade vende publicidade, operação nada vantajosa para o espectador/pagante. É uma prática que se pode, sem exagero, considerar afrontosa.

Na televisão, no rádio, no jornal, na internet, no celular, no intervalo entre o início da sessão de cinema e o filme, dentro do ônibus ou vagão ferroviário, olhando para anúncios de rua enquanto anda a pé ou de automóvel, você dá, de graça, atenção. É o preço de ficar “conectado”, no sentido metafórico – bem mais importante do que o sentido literal, de ter uma conexão com a rede.

Qualidade, qualidade!

O Festival ‘Piauí’ de Jornalismo foi realizado no fim de semana de 15 e 16 de novembro, em São Paulo. Os promotores da importante rodada de debates não têm responsabilidade pelo viés do público. Não só a piauí é admirada por seu conteúdo e forma como as personalidades convidadas, em geral (este repórter não assistiu a duas das rodadas – os debates com Nikil Saval, da n+1, e Evan Ratcliff, do Atavist), insistiram na indispensabilidade de se produzir jornalismo de alta qualidade. Não são, porém, “modelos de negócios”. São modelos de modalidades jornalísticas.

Foto de Tuca Vieira

Atenção dividida

Os debatedores brasileiros, embora fossem todos jornalistas competentes e experientes, se deixaram levar em alguma medida pelo interesse imediato da plateia, composta em grande número por jovens profissionais e estudantes. Plateia onde, bom sinal dos tempos, só uma minoria precisou recorrer aos fones de tradução simultânea do inglês e do espanhol.

Faltou chamar a atenção, sendo seis dos oito convidados americanos (além dos dois acima, Stephen Engelberg, do ProPublica, Pamela McCarthy, da The New Yorker, Max Fisher, do Vox, e Andrei Scheinkman, do FiveThirtyEight, também conhecido pelo numeral 538), para as monumentais diferenças socioeconômicas, políticas, tecnológicas e culturais entre as duas maiores nações das Américas.

O mundo todo olha para a internet americana porque nela se fazem as experiências mais avançadas e, quase sempre, portadoras de futuro. Mas a transposição requer uma série de competentes mediações. Não se trata de conselho, mas de constatação: todos os projetos que funcionaram a contento no Brasil respeitaram tais diferenças.

E mais: o que pode funcionar em São Paulo e no Rio de Janeiro pode não funcionar em outros mercados. O que não retira das experiências locais suas virtudes, exatamente porque atendem a especificidades. É óbvio, mas precisa ser dito. Ainda mais num contexto em que se preza muito o conhecimento da audiência e a criação de laços com seus integrantes. Se os leitores forem vistos como interlocutores e não como massa de manobra, haverá colaboração. Com um potencial que só se pode, hoje, imaginar.

Política com P grande

O site Chequeado: La verificación del discurso público é um dos dois, entre os apresentados no Festival Piauí, com maior peso político relativo em seus países (o outro é El Faro, de El Salvador). As razões dessa relevância, que levaram seus representantes, Laura Zommer e Carlos Dada, a mostrar grande entusiasmo com a situação atual do jornalismo (não certamente das empresas de comunicação), são: 1) tratam diretamente dos principais temas políticos de seus países, isto é, fazem Política com pê maiúsculo; 2) praticamente não têm concorrentes à altura a lhes disputar a audiência.

Foto de Renato Terra

Laura Zommer, do Chequeado

Os sites FiveThirtyEight, Vox e ProPublica são americanos. Se quisessem alçar-se à dimensão da grande política, enfrentariam o jornal mais importante do mundo, The New York Times, e outros pesos-pesados, como o Washington Post, o Wall Street Journal, a robusta audiência americana dos britânicos Financial Times, The Economist, The Guardian etc. Muitos et ceteras, entre os quais redes de televisão e rádio. Então, fazem um recorte ou da realidade (Vox, ProPublica), ou do espectro de conhecimento da realidade (FiveThirtyEight, cuja atividade Andrei Scheinkman descreveu como “jornalismo de dados” e é explicada por seu fundador, Nate Silver, no manifesto “What the Fox Knows”).

Parcerias

O ProPublica, mantido por uma entidade sem fins lucrativos, usa ainda, inteligentemente, um sistema de parcerias com a grande mídia, como o NYT, a NPR (National Public Radio), a CNN – quase 100 empresas e organizações. Ganhou em 2010 o primeiro prêmio Pulitzer de jornalismo concedido a um veículo digital (que o produziu e distribuiu em parceria com um veículo impresso, o New York Times Magazine), por uma reportagem sobre a escolha feita por médicos de um hospital de Nova Orleans, após o furacão Katrina, entre tratar e deixar morrer vítimas da catástrofe: “The Deadly Choices at Memorial”.

No panorama que o festival permitiu descortinar, a revista The New Yorker é um caso à parte: consegue sobreviver no papel com mais de 1 milhão de assinantes, e ao mesmo tempo aumentou a audiência de seus formatos digitais.

Participação e transparência

Um aspecto crucial presente nas falas dos convidados da piauí é a preocupação com a participação do público e a transparência, mandamentos quase bíblicos da era digital.

Laura Zommer, diretora-executiva do Chequeado (em português se diria “checado”, verificado), mencionou a colaboração recebida do público via Twitter e Facebook. Além disso, especialistas dão um dia de trabalho por ano (do início do expediente até meia-noite…) e estudantes, até duas semanas. Zommer formou-se em direito, além de ciências da comunicação. Explicou que “dados são um instrumento estratégico” e resumiu, com franqueza tipicamente portenha, que o objetivo do Chequeado pode ser descrito como “aumentar o custo da mentira”.

O método usado está descrito num manual: querem fazer uma “checagem aberta”. Entre suas regras está a de conferir o dado com três fontes independentes. A jornalista disse que o site não aceita ajuda financeira de quem não queira se identificar. Para Zommer, os atributos de quem pretende fazer bom jornalismo são disposição, paixão, honestidade intelectual e ser obsessivo.

O Chequeado usa as seguintes classificações para avaliar uma afirmação: verdadeira (demonstrou-se tal ao ser confrontada com as fontes e os dados mais sérios e confiáveis); verdadeira + (ademais, corroborada por dados); verdadeira, porém… (omite algum elemento do assunto, ou o contexto, embora compatível com os dados disponíveis); discutível (depende das variáveis que se usem para analisá-la); apressada (poderia ser verdadeira, mas é resultado de uma projeção, não de um dado objetivo da realidade); exagerada (a informação em si não é estritamente certa, mas corresponde a um conceito ou tendência verdadeiros); enganosa (pode ou não coincidir parcialmente com alguns dados, mais foi manipulada, intencionalmente ou não, para gerar determinada mensagem); insustentável (resulta de pesquisa que não se sustenta, ou tem graves erros metodológicos, ou que não é possível conferir); falsa (demonstrou-se falsa ao ser contrastada com dados sérios e confiáveis).

O sistema algo barroco de classificação tem a ver com a busca de rigor – busca sagrada para quem bota o dedo na ferida alheia – e, talvez, com a necessidade de driblar possíveis incriminações judiciais. Até hoje, o Chequeado não enfrenta processo na Justiça.

Números e palavras

Andrei Scheinkman, subeditor-chefe e editor de dados e tecnologia do FiveThirtyEight, disse que o site não é dirigido a entendidos. Um de seus princípios é atingir um púbico amplo, do qual não se requerem conhecimentos de estatística. O FiveThirtyEight tem uma parceria forte com o canal de esportes ESPN. Uma de suas missões é ampliar conhecimento que evite uma leitura equivocada dos dados. Scheinkman exemplificou um dos desafios: como comunicar para o leitor conceitos de probabilidade estatística?

É uma iniciativa que cresceu rápido. Criado em março passado, com duas pessoas na redação, chegou a novembro com vinte profissionais. Um dos exemplos de matérias mencionados por Scheinkman foi o de uma análise sobre dados da polícia relativos a violência que acabou se transformando num texto sobre a má qualidade dos dados. Lamentou que o site tenha surgido num período de grave crise da grande imprensa, o que pode sugerir a existência de correlação entre os dois fenômenos, o que negou.

Novos formatos

Max Fisher, diretor de conteúdo do Vox, relatou o objetivo da equipe de “construir o site com ajuda da audiência, na frente da audiência“, o que é exatamente o contrário do que vem sendo feito desde o advento da internet, porque se conservou a concepção da obra finda e fechada, traço mais evidente da impressão com tinta em papel. Quem não se lembra da “apresentação” de um desenho de site numa sala fechada, a uma plateia selecionada, ao estilo das agências de publicidade?

O Vox pega essa contramão com criatividade. Usa card stacks (algo como “fichas de informação”). Nessa seção há, por exemplo, “Treze coisas que você deve saber sobre Ebola”, ou “Tudo que você precisa saber sobre as prisões”. Textos longos são assim distribuídos em tópicos que deslizam contra um fundo unificador (uma fotografia esmaecida). Cada ficha pode ser isoladamente compartilhada em redes sociais. O princípio das “fichas” não tem a ver com últimas notícias (breaking news).

Vídeos de 2 minutos

Outro recurso consiste em produzir um vídeo de dois minutos para “explicar coisas bastante complicadas”. Um deles, sensacional, pode ser visto nesta página: “The better way to board an airplane”. Agora, é preciso dizer que para fazer isso o site tem que ter completa independência. No caso, critica as maiores companhias aéreas do país.

>> Veja aqui.

Fisher contestou a ideia de que sites como o Vox estejam roubando leitores alheios: “Estamos na verdade aumentando o pool de leitores”. Entretanto, como a fatia de leitores de notícias é pequena como proporção da população, esse aumento cria um problema: o bolo publicitário é o mesmo e o número de sites de notícias cresce sempre, o que faz com que cada página vista (page view) vá ficando mais barata. Daí o recurso a diferentes modalidades de financiamento, como as iniciativas jornalísticas patrocinadas.

Para o diretor de conteúdo do Vox, a home page está morrendo e o desafio agora é desenhar aplicativos que tornem fácil a leitura em dispositivos móveis. A home do Vox é minimalista e usa a metáfora das fichas:

Fisher destacou a “metade cheia do copo d’água”: “Nos Estados Unidos nunca houve um período tão bom para ser um consumidor de notícias, graças à oferta”. E recomendou: “Descubra algo que ninguém mais esteja fazendo na internet, ou não esteja fazendo direito, para dar no seu site”.

Reportagem literária

Carlos Dada, um dos fundadores do salvadorenho El Faro, começou falando da história de seu país e do contexto político em que foi criado o site, em 1998, seis anos após o acordo de paz que pôs fim à guerra civil iniciada em 1980, cujas consequências foram devastadoras.

A paz salvadorenha foi considerada um exemplo mundial, porque encerrou imediatamente toda violência política, mas não a violência criminal, que é pesadíssima – El Salvador é considerado o terceiro país mais violento do mundo –, como se pode constatar lendo a matéria destacada na capa do site na primeira semana de dezembro:

>> Leia aqui a reportagem.

Dada explicou que El Faro até recentemente usou a palavra escrita, numa combinação de reportagem e narrativa literária, para contar histórias relevantes, como a do ex-capitão aviador Álvaro Rafael Saravia, um dos participantes do complô para assassinar o arcebispo de San Salvador Óscar Romero, em 1980, durante uma missa. Foi esse episódio que provocou a eclosão do conflito.

A reportagem “Así matamos a monseñor Romero” (vinte laudas) entrou na rede em 2010, teve 250 mil visitas, derrubou o servidor do El Faro e comprovou que vale a pena investir anos numa matéria quando o assunto mexe com o “sistema nervoso” do imaginário coletivo: a memória dos acontecimentos mais dramáticos.

Hoje, El Faro faz experiências com rádio e vídeo (documentários), além de oferecer áudios de entrevistas.

No site da piauí

Informações sobre cada uma das experiências jornalísticas apresentadas no festival podem ser encontradas a partir de uma página de blogue da piauí. Há também trechos de gravações de algumas das participações dos convidados. Veja aqui.

Cobertor curto

Voltemos ao difícil panorama brasileiro.

Mesmo quando se tem uma experiência de revista ao mesmo tempo séria e risonha, elegante na forma, que procura surpreender, como é o caso da piauí (e como foi no passado o da Senhor de Nahum Sirotsky – a revista circulou entre 1959 e 1964), faltam recursos para voos mais ambiciosos. No caso da piauí, ainda é limitada, por exemplo, a utilização que faz da internet, diante do potencial: seus leitores são, em grande maioria, usuários da rede.

As pessoas querem ver luz no fim do túnel. Pode ser que muitas estejam olhando para o lado errado. Como aconteceu com os promotores de uma das mais interessantes experiências de jornalismo na internet brasileira, o portal de jornalismo No., sucedido, já em crise, pelo NoMínimo. Não lhe faltavam qualidade, nem audiência. Mas foi concebido segundo um “modelo de negócios” equivocado.

Foi concebido como um negócio. Seus financiadores cogitaram mesmo de uma IPO (oferta pública inicial de ações) na Bolsa de Nova York. Não houve como sustentar ($) a estrutura montada. Esqueceu-se a sábia recomendação de agir gradualmente. Foi lançado no mês de abril de 2000, em pleno clima de euforia que animou a “bolha da internet”. Era brilhante e relevante. Em maio de 2002, foi substituído pelo NoMínimo (a turma não perdeu a chance de fazer graça nem mesmo com o próprio revés), que naufragou em 2007.

Foto de Tuca Vieira

Iluminações

“Nova economia”

A “nova economia” tem responsabilidade nisso. Foi uma das lorotas da internet. O respectivo verbete da Wikipedia está bem-feito, curto e grosso: ver aqui. Com frequência deixamos de levar em conta que os jovens hoje na faculdade, que têm entre 17 e vinte e poucos anos, ou não tinham nascido ou estavam nascendo quando a rede chegou ao Brasil. Não se pode cobrar deles – a não ser dos que tenham estudado o assunto – consciência muito apurada do que aconteceu. Dos marmanjos, sim, mas esses às vezes se fazem de tontos.

No ano em que a internet chegou ao Brasil, um usuário então já veterano, o astrônomo Clifford Stoll, publicou um livro chamado Silicon Snake Oil (que se poderia traduzir, muito livremente, por “Embromações do Vale do Silício”). Era um alerta, captado no ato (e criticado, modus in rebus) pela brilhante Maria Ercília, que assinava na Folha de S.Paulo a coluna “Netvox”. No dia 5 de maio de 1995, a coluna chamou-se “Óleo de Serpente”, em referência ao título do livro.

A bolha do ano 2000

Cinco anos depois estouraria a bolha da internet, mas a maioria das pessoas que foram ao Festival Piauí de Jornalismo mal tinham entrado no ensino básico. Não acompanharam a maluquice das grandes empresas jornalísticas, que, sentindo-se já então ameaçadas, haviam partido para diferentes tipos de aventuras – televisão, TV a cabo, telefonia, internet – devastadoras para suas finanças (no caso da Gazeta Mercantil, tão mortíferas que ela deixou de existir).

Entre outras razões, porque fizeram dívidas em dólar que se converteram em pesadelo quando o real, que começou valendo até mais do que o dólar, em 1994, foi desvalorizado (o dólar passou de R$ 1,32 no dia em que se decretou o câmbio livre, 13 de janeiro de 1999, para R$ 2,16 três meses depois; quem devia, digamos, por 200 milhões de dólares, R$ 264 milhões, passou a dever R$ 760 milhões no início do governo Lula 1, quando o dólar encostou nos R$ 3,80).

Foto de Tuca Vieira

Festival de juventude

Globo, Estado, Gazeta Mercantil, Editora Abril entraram pelo cano – o Jornal do Brasil já agonizava, mas por outras razões, de (des)“governança”. A Folha escapou inteligentemente dessa crise com a criação do UOL, portal associado ao provimento de acesso.

A ameaça seguinte foi a de criação de conteúdo jornalístico na internet por poderosas empresas estrangeiras que haviam chegado ao país com a privatização da telefonia. Muito se temeu essa possibilidade, até hoje não concretizada.

Sete perguntas

A mídia jornalística de papel enfrenta uma realidade dura. No texto “Um modelo de negócios para o jornalismo digital”, o jornalista e professor Caio Túlio Costa, diretor de operações do Projor, entidade mantenedora do Observatório da Imprensa, sintetiza os desafios criados para os negócios calcados no modelo analógico pela “nova cadeia de valor” do universo digital:

“>> Como uma publicação pode vencer sem fazer apenas a transposição do modelo tradicional para o mundo digital?

>> Como cobrar por um conteúdo que os internautas conseguem de graça, mesmo de pior qualidade?

>> Como financiar a produção online de jornalismo de qualidade?

>> Como enfrentar tanta informação, tanto boato, tanta opinião?

>> Como garantir o jornalismo independente?

>> Como manter a lucratividade alcançada no meio impresso?

>> Como se inserir de forma eficiente na nova cadeia de valor?”

Velocidade

A notícia matutina, produzida na noite anterior, impressa e distribuída de madrugada, pode estar velha no meio da manhã. Calma, leitor: ainda não se conseguiu hierarquizar direito a notícia nas telas – cada vez mais, telas de aparelhos móveis, portanto bem menores do que as de um computador de mesa; o assinante muitas vezes considera insubstituível o momento em que se senta para “ler jornal”; uma análise ou comentário relevante pode durar mais que um dia; as gerações atuais de leitores não dominam como os “nativos digitais” a “navegação” na internet, embora o público seja cada vez mais usuário de telas, que ainda não substituem livros, mas caminham para substituir com vantagem jornais e revistas.

Mas, se você quer um argumento francamente desfavorável à civilização do jornalismo impresso, eis aqui: a distribuição de conteúdo jornalístico pela internet é muitíssimo mais barata do que a distribuição de jornais e revistas impressos, que requer, no aranzel das grandes cidades (onde ficam as sedes dos grandes grupos), frotas e logísticas cada vez mais dispendiosas.

A própria produção do conteúdo digital, que dispensa papel, tinta, rotativas – embora exija equipamentos nada baratos, e principalmente softwares sofisticados –, elimina uma etapa material custosa.

Mais do que tudo isso, a mudança tecnológica impõe uma nova lógica. Os conteúdos agora são referidos a suportes, não mais a formatos de produção.

Adeus, formato industrial

Façamos uma analogia: o CD e o arquivo mp3. O formato do CD – como era o dos discos de 78, 33 e 45 rotações – é determinado por um processo industrial de prensagem que desaparece na produção do arquivo digital. Há muito os criadores e intérpretes sabem que não existe correspondência entre formato e inspiração. Quando um long-play tinha alta coerência interna, isso era saudado efusivamente (Sgt. Pepper’sLonely Hearts Club Band, dos Beatles, é bom exemplo). Nas década de 1970-80, vários LPs foram lançados com faixa única. Ela podia ocupar apenas os cerca de três minutos convencionais, ou ser do tamanho de um lado de LP (vinte e cinco minutos, por aí), como a faixa-título de Circle In The Round (Miles Davis, 1979).

Hoje a pessoa compra as faixas musicais que quiser, e o tamanho delas é ditado pela sensibilidade do artista (que pode ou não levar em conta a duração a que estamos universalmente acostumados; Beethoven explodiu na 3ª Sinfonia, Eroica, a duração convencional dos movimentos das sinfonias até então compostas).

Cortar palavras

O mesmo fenômeno ocorre com a palavra escrita. O conteúdo se libertou do formato industrial, sem regredir ao estágio da pura oralidade, que determinava um pensamento necessariamente menos complexo do que o propiciado pela escrita. (Isso não quer dizer que homens de qualquer época passada tenham sido menos inteligentes do que seus descendentes.)

Não por acaso, Carlos Drummond de Andrade sentenciou que “escrever é cortar palavras”. No reino do livro industrial, os formatos são induzidos, embora os haja de todos os tamanhos e com as mais diversas peculiaridades. A experiência de Jack Kerouac com o rolo que, à moda de telex, usou para escrever On The Road pede reflexão, não apenas admiração. Escrever é cortar palavras também para não cair na tentação de usar o espaço tornado disponível pela facilidade de impressão e pelo formato industrial.

Encher linguiça

Em sentido inverso, a frequente falta de material resulta em “apelações”. Um senador governista do Rio Grande do Sul, Carlos Chiarelli (antigo PDS, 1983-1990), teve a manha de explorar o deserto de notícias que eram as tardes de domingo. Nessas ocasiões, para alegria de repórteres e editores de plantão, estava sempre disponível, ou em Porto Alegre, embarcando, ou em Brasília, desembarcando.

Sempre às segundas-feiras, ganhava uma projeção nacional invejável. Era algo inteiramente desproporcional à importância das declarações. E este é um único mísero exemplo, num universo de dezenas, centenas de milhares, talvez milhões de casos semelhantes.

O espaço ocupado pela publicidade, ou o tipo de exposição vendido ao anunciante, criam igualmente “buracos” de conteúdo preenchidos dia sim, e o outro também, com material de baixa qualidade jornalística/artística/intelectual, ou disfarçados por arrojos gráficos de diagramadores e ilustradores. Não poucas vezes, os diagramadores fazem com essas viagens um favor ao leitor, poupado de verbosidade oca.

A força do hábito

Anos, décadas foram se passando e gerações de editores e diagramadores deixando seu legado para as seguintes, de tal maneira que muita coisa é feita no “piloto automático”, sem que se questione por quê. É assim porque é assim. O sujeito assume a tarefa e trata de cumprir o riscado. Isso é pateticamente verdadeiro, assinale-se, na internet, onde toda novidade era (ainda é) copiada mecanicamente. Com grande frequência, não ocorria ao autor da façanha perguntar-se sobre a legibilidade do design que perpetrava.

No caso dos jornalões, é notório que não há ninguém capaz de ler uma edição inteira (mesmo deixando obviamente de lado os classificados, por sinal uma espécie em extinção) e ainda fazer alguma coisa durante suas horas de trabalho ou lazer.

Páginas ao lixo

No início dos anos 1990, Augusto Nunes e Ricardo Setti encomendaram um estudo sobre o tempo de leitura do Estadão. Se não me falha a memória, uma edição inteira de dia de semana consumia quatro horas e quarenta minutos de leitura. Sem interrupção.

Qual é a rotina de quem recebe jornal em casa? Livrar-se o mais rápido possível do “excesso”, ou seja, dos cadernos que com toda certeza não vai ler. Pensemos no tempo coletivo gasto nessa operação individual doméstica e no desperdício de recursos naturais, matéria-prima industrial, manufatura e serviços. Faz sentido? Fazia, plenamente, quando não havia substituição possível. Hoje, cada vez menos.

Do ponto de vista dos produtores de informação, a distribuição pela rede também é economicamente vantajosa, porque cada indivíduo compra seu aparelho de recepção, como cada família/indivíduo comprou seu telefone e, depois, seu aparelho de rádio e de televisão. Mais ainda quando se pensa positivamente na “superdistribuição” de informação, vista do ponto de vista analógico (que pressupõe controle exclusivo do conteúdo) como ameaça, mas cujo sinal pode ser mudado de negativo para positivo.

Quem vai ganhar

Os designers estão longe da solução ideal de diagramação para telas (de diferentes formatos). É provável que o primeiro jornal a unir conteúdo de qualidade com boa leitura em aparelhos móveis, mais especificamente celulares, seja um grande vencedor na atual etapa da comunicação. O New York Times entrou cantando pneus nessa estrada. Mas não apenas porque conseguiu de seus programadores um aplicativo maneiro: essencialmente, porque tem muito conteúdo de qualidade, formatado competentemente, para distribuir pelo app. Caso contrário, seria só uma fachada vazia.

Até aqui, diga-se de passagem, o que mais se tem tentado é traduzir o extremamente bem-sucedido formato da página diagramada de jornal ou revista num desenho legível em tela. Ainda não se exploraram de fato as potencialidades do hiperlink, recurso por excelência da internet. Talvez porque nem os designers nem os leitores tenham suficiente cultura digital para isso. Mas ela virá.

O que fica

Enquanto isso, tratemos de preservar as qualidades das redações que fizeram dos melhores jornais o que são hoje ou foram no passado de glória (Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Última Hora, Gazeta Mercantil…). Essas mesmas qualidades não poderão faltar nas novas equipes, as equipes que serão vencedoras no alvorecer da era digital, nada estática.

Não se trata de ajustar a prática do jornalismo ao ecossistema digital. Essa batalha já se perdeu, e não poderia ter outro desfecho. “Tudo que é sólido desmancha no ar.” Trata-se de descobrir como do ecossistema hegemônico vão brotar novas práticas que cumpram as funções políticas e sociais que transitam hoje, ainda, pelas plataformas gutenberguianas e eletrônicas.

Experiências de alta qualidade jornalística, mesmo que fracassem como negócio, deixarão marcas e exemplos fecundos no processo de transição entre o analógico e o digital, ao passo que já nos esquecemos completamente de produtos rasos e mal alinhavados que ainda ontem povoavam o brilhareco de novidades da internet que tiveram morte precoce (no ensaio acima mencionado, Caio Túlio dá uma lista delas).

O maior desafio parece ser como combinar as ferramentas da rede com a participação dos cidadãos. Sem espontaneísmo, mas sem a velha centralização hierárquica herdada das monarquias e das igrejas.