No fim de 1999 chegava às livrarias uma bombástica obra sobre jornalismo político. Notícias do Planalto, a imprensa e Fernando Collor, do jornalista Mario Sergio Conti, revelava aos leitores os bastidores da atuação da mídia brasileira da ascensão do ex-presidente Fernando Collor à sua renúncia. Collor chegou ao poder incensado pela mídia. E foi o trabalho da própria imprensa que ajudou a derrubar o “caçador de marajás” com uma série de denúncias de corrupção, dois anos e nove meses depois de o primeiro presidente eleito por voto direto desde 1960 assumir o mandato. Conti entrevistou donos de veículos de comunicação e jornalistas para montar um panorama da imprensa nos primeiros anos da redemocratização do país.
Em 2000, Notícias do Planalto recebeu o prêmio Jabuti na categoria Melhor Reportagem. O livro virou best-seller e passou a ser adotado em escolas de Comunicação como obra de referência. Treze anos depois da publicação, Mario Sergio Conti está lançando a segunda edição do livro. É no posfácio da obra que encontramos um dado desolador para a imprensa brasileira: todos os repórteres que encabeçaram as denúncias contra Collor deixaram de trabalhar como jornalistas. Agora, atuam “do outro lado da notícia”, como assessores de imprensa ou marqueteiros.
O Observatório da Imprensa exibido pela TV Brasil na terça-feira (31/7) trouxe uma entrevista de Alberto Dines com Mario Sergio Conti. Conti tem uma larga experiência na imprensa. Foi o primeiro diretor da revista piauí, onde atualmente atua como repórter, e apresenta o programa Roda Viva, da TV Cultura, de São Paulo. O jornalista dirigiu a Redação de revista Veja entre 1991 e 1997 e também trabalhou no Jornal do Brasil e na TV Bandeirantes.
De pedra a vidraça
Na abertura do programa, Mario Sergio Conti explicou que a ideia do posfácio da segunda edição do livro era montar um quadro sobre que aconteceu com as relações entre a imprensa e o poder após a renúncia do ex-presidente Fernando Collor. A partir da pergunta “Aprendemos com o passado?”, o jornalista decidiu verificar o que aconteceu com os personagens, as situações e os órgãos de imprensa que formavam o pano de fundo do caso Collor.
Sem fazer julgamento moral sobre as escolhas dos “jovens e aguerridos” repórteres que investigaram o caso Collor em Brasília, Conti comprovou que hoje esses profissionais já não atuam na grande imprensa. “Esses repórteres, todos, passaram para o lado de lá. Saíram da imprensa, montaram pequenas empresas ou foram trabalhar em grandes empresas de assessoria de comunicação. Viraram consultores, viraram marqueteiros. Todos aqueles que ajudaram a expor, a mostrar para o país, para a população, o que era o governo Collor na realidade, o que não tinha nada a ver com o marketing, fazem [hoje] o contrário. Fazem o marketing e tentam esconder o que os seus empregadores fizeram de ruim, tentam moldar as notícias de maneira a favorecê-los”, disse Conti.
Ao longo dos últimos 13 anos, o capital na área de mídia foi redistribuído. Houve um expressivo crescimento das agências de assessoria de imprensa e de marketing, que passaram a contar com altos recursos e, assim, atraíram os talentos daquela geração de repórteres. Duas delas merecem destaque: a FSB e a CDN. “Ambas têm mais jornalistas do que a Folha de S.Paulo, que O Estado de S.Paulo, que O Globo. Têm centenas de jornalistas. E essas empresas pegam contas de governos, de empresas, de políticos, de partidos, para ajambrar a imagem deles, mostrar como eles devem se portar na frente das câmeras, como devem dar entrevistas, como devem responder a escândalos, denúncias”, disse Conti.
Lição desperdiçada
Mario Sergio Conti explicou que o crescimento das assessorias de marketing e de imprensa é um fenômeno mundial. Políticos, jornalistas e empresários brasileiros observaram a estrutura de outros países e aplicaram o modelo aqui. “A imprensa se enfraquece, relativamente. E ela tem outros problemas, como a entrada da internet, a entrada de novos parceiros e atores, um novo poder. Tudo isso vai configurando uma situação em que o jornalismo vai ficando cada vez mais complicado de exercer”, sublinhou. Diante desse cenário, os jornalistas que atuam na imprensa enfrentam dificuldades para encarar os desafios dos novos tempos. Apesar da situação preocupante, Conti acredita que é possível mudar o panorama e que há bons profissionais no mercado.
Após o caso Collor, em que a imprensa teve um papel de destaque, a mídia poderia ter aproveitado o exemplo para ficar mais combativa e novos investimentos deveriam ter surgido para fortificar a imprensa. Mas o movimento gerado após o episódio do impeachment foi exatamente o contrário. A informação passou a ser mais controlada e a imprensa acabou enfraquecida. Dines comentou que atualmente há uma “robotização da notícia”. O fluxo das informações é “de fora para dentro” das redações dos jornais. Conti concordou e acrescentou que a imprensa perdeu o ímpeto de garimpar fatos novos, e esse hábito acabou por gerar uma padronização das notícias.
Um fator que contribuiu para essa homogeneização foi iniciativa de determinadas forças políticas e grandes grupos de comunicação de manipular as informações de acordo com os seus interesses. “Os conglomerados tentam padronizar mesmo. ‘Olha, isso aqui não interessa à casa, vamos cobrir tal novela deste jeito…’. Lá fora não é feito assim”, disse Conti.
Paradigma dos Estados Unidos
O jornalista citou o caso da imprensa norte-americana. A editora Condé Nast, que é responsável por 18 publicações, abriga revistas com perfis políticos distintos, como The New Yorker e Vanity Fair. “Eles preservam a identidade desses dois órgãos de imprensa. E o argumento é empresarial, eles pegam dois mercados”, disse Conti. O jornalista ressaltou que a situação se repete em outros países desenvolvidos, como a França, e que o pluralismo sai fortalecido quando há revistas com diferentes enfoques e vertentes.
Para ele, os jornalistas também contribuíram para a mudança na imprensa brasileira, uma vez que foram complacentes com a situação. Até mesmo em ambientes onde a diversidade de opiniões deveria ser ampla, como na internet, há problemas que limitam o debate de ideias. O anonimato e as agressões verbais são exemplos de fatores que acabam enfraquecendo as discussões. “Vamos colocar argumentos ao invés de xingatórios. Por que esses órgãos de imprensa, grandes jornais, grandes revistas, permitem o anonimato e o xingatório? Porque há jornalista que deixa. É só falar ‘não’. É uma questão de vontade mesmo”, avaliou Conti.
Dines e Conti relembraram que no período pós-ditadura houve diversas oportunidades em que a imprensa se deixou levar por princípios errados. Em apenas dois momentos a mídia brasileira daquela época conseguiu superar a mesmice: durante a campanha pelas eleições diretas para presidente e na apuração dos casos de corrupção no governo Collor. Mesmo descontados os exageros e erros das duas coberturas, o papel da imprensa nesses episódios foi digno, na avaliação de Conti. No entanto, de acordo com o jornalista, a imprensa não acumulou as lições dessas duas coberturas. “Aquilo que deveria ser um exercício permanente de aprender, de progredir, de repente some. Você tem que começar tudo de novo. É realmente muito frustrante”, afirmou o entrevistado.
Olhar para o passado
A falta de investigação jornalística dos crimes cometidos durante a ditadura militar é um exemplo da apatia da mídia após a abertura do regime. “A imprensa perdeu tempo e não apurou. No começo, talvez por medo dos militares, autorrestrição, não foi atrás. Depois, deu-se o inverso: ‘Isso é chato, é coisa do passado. Vamos cobrir a cantora tal’”, criticou Conti. Hoje, ao comparar a cobertura da ditadura brasileira com o trabalho jornalístico da imprensa de outros países em momentos controversos, como a mídia norte-americana a respeito da Guerra do Vietnam ou a imprensa francesa sobre a independência da Argélia, percebe-se o contraste.
Um dos pontos de maior repercussão de Notícias do Planalto foi o relato da polêmica edição do debate entre os candidatos à presidência da República em 1989, Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, feita pela TV Globo. Dines relembrou que havia uma grande expectativa sobre a visão de Conti a respeito desse episódio. O autor avaliou que Collor, de fato, teve um desempenho superior durante o debate. “A edição da [TV] Globo no Jornal Nacional mostra que Collor foi melhor, mas exagera. Foi muitos pontos acima. E em uma coisa que é objetiva: o tempo de cada um”.
Em um nítido privilégio, de acordo com Conti, a emissora concedeu cerca de um terço a mais do tempo para o então candidato do PRN. “A responsabilidade foi o Alberico Souza Cruz, que nem era o diretor de Jornalismo na Globo. Quem era o diretor era o Armando Nogueira, que fez isso a mando do Roberto Marinho, que queria privilegiar o Collor”, afirmou o jornalista. Conti comentou que a TV Globo decidiu não editar mais os debates entre candidatos porque os critérios de avaliação são muito subjetivos.
Dines relembrou que o lançamento de Notícias do Planalto foi estrondoso e Conti disse a repercussão mostrou que havia interesse da sociedade pela imprensa, uma instituição fechada que debate seus problemas apenas por competição empresarial. “Acho que os colegas podem ter interesse – as novas gerações, os estudantes, quem acompanha a imprensa – para ver [que] ‘isso aqui funciona de tal maneira’, ‘de lá para cá isso funcionou em um tal sentido’”, avaliou o jornalista.
***
[Lilia Diniz é jornalista]