Depois de um ano, três meses e 21 dias no Palácio do Planalto sem ter concedido uma única entrevista coletiva à imprensa de seu país, o presidente Lula abriu na semana passada a Granja do Torto ao apresentador de televisão Ratinho – que representa como poucos o que a mídia de massa brasileira tem de pior – para conceder-lhe, durante três horas, uma exclusiva ‘entrevista-churrasco’, na apropriada expressão do colunista de TV da Folha de S.Paulo, Daniel Castro.
A imprensa, de seu lado, reagiu com imperdoável complacência a esse capítulo raso da operação dudamendoncista destinada a estancar a sangria da popularidade de um presidente que fala ao povo sem parar, mas cujo governo fica entre a marcha-a-ré e o ponto-morto em matéria de política social.
Segundo Ratinho, ele mesmo teria pedido a Lula, há um mês, ‘uma força’ para o seu programa no SBT – que, assim como o presidente, já foi mais popular. Segundo uma não identificada ‘assessoria’ citada pelo colunista da Folha, Lula teria atendido ao convite do ‘amigo’ (as aspas são do texto publicado).
Claro como o dia: temendo, ou dissuadido a se expor à inquirição daqueles cujo ofício os desaconselha a serem amigos dos poderosos de turno – e, quando o forem, os obriga a tratar as verdades recebidas com profissional ceticismo –, Lula optou por encenar uma sabatina com quem de forma alguma o colocará contra a parede, numa situação de mutua conveniência.
Além de postiça, a sabatina foi gravada (para ir ao ar, ao que se informou, nesta sexta-feira, 30). O que proporciona a vantagem adicional de permitir expurgar do que for servido ao incauto público do senhor Carlos Massa qualquer impropriedade que o seu amigo Luiz Inácio da Silva possa ter cometido enquanto proseavam passeando pelo Torto, ou atacando uma carne com feijão tropeiro, sob o olhar de seis câmaras de TV.
Ao vivo e em cores
Cada qual tem os amigos que escolheu ter, com os bônus e os ônus que isso traz. Pode não ser problema para Lula que no seu círculo de amizades haja lugar para um cidadão que, diria o velho clichê, galgou os degraus da fama midiática (ou da infâmia, como se queira) promovendo a violência, ‘expressa com absoluta literalidade pelo cassetete que marcava o compasso dos insultos, da incitação à tortura e da apologia da pena de morte’, ao que se seguiu ‘a exploração do grotesco, das patologias e infelicidades que assombram o dia-a-dia da parcela mais miserável e embrutecida da população’ (texto deste leitor, de julho de 1999).
Naquele ano, pobre Brasil, Ratinho confraternizou com o então presidente Fernando Henrique, que o convidou em segredo para um papo informal no Alvorada, e recebeu Lula pela primeira vez em casa, também sem alarde. (Quem divulgou este último encontro foi a repórter Mônica Bergamo, da Folha.) Depois, Ratinho revelou ter aconselhado Fernando Henrique a ‘falar duro’, porque ‘o povo gosta’.
Mas os amigos do presidente (dos governadores, prefeitos e tutti quanti) são, obviamente, problemas da imprensa – quanto mais não seja porque algumas dessas amizades se escrevem com um cifrão antes do nome, ou do apelido, do amigo.
E sendo quem é o amigão do Lula, a imprensa precisaria ter ido além da justa crítica da colunista Dora Kramer de que, em vez de circular por programas de televisão – o Planalto tinha engatilhado também uma entrevista a Jô Soares, da TV Globo, afinal adiada por iniciativa deste –, melhor faria a sua Comunicação se convocasse uma coletiva com transmissão ao vivo, ‘como costumam fazer os chefes de nações democráticas’.
Versão duvidosa
O noticiário, as colunas políticas e as páginas de editoriais falharam feio em não chamar a atenção para o ‘logo quem’ Lula, com toda a sua biografia às costas, chamou para a montagem de um espetáculo de propaganda e marketing. Trazer esse ‘logo quem’ para o proscênio, por sua vez, não é apenas avivar a memória do leitorado para a folha corrida do amigo – o que, aliás, a Folha fez.
É mostrar, interpretar e julgar o fato de que, mais espinhoso fica o abacaxi do governo e mais descrente começa a ficar o povão, mais Lula se agarra a um populismo escrachado que não guarda o menor parentesco com a trajetória do Partido dos Trabalhadores (goste-se ou não dela).
Nesse sentido, a combinada aparição do presidente no Programa do Ratinho é a transposição de uma fronteira política. É um transbordamento populista que merecia estar no foco da mídia tanto quanto estão a política econômica, a improdutividade do governo, o aparelhamento/loteamento da máquina e a mancebia do Planalto com os Sarneys e ACMs.
Parece haver um nexo – que precisa ser trabalhado, exposto, debatido e avaliado – entre o presidente que diz, sem se dar conta da demonstração de paternalismo explícito, que não governa o Brasil, mas cuida do país ‘com o mesmo carinho que cuido da minha mulher e dos meus filhos’, e o presidente que aceita dar uma força ao Ratinho e usar o seu tempo de TV para vender a duvidosa versão de que ‘arou a terra no primeiro ano, jogou adubo, plantou no começo deste ano e começa a colher em junho’.
Existe, em suma, uma pauta ‘Lula’ a ser debulhada. [Texto fechado às 7h53 de 26/4]