Sexta-feira, 8 de novembro de 2019. Uma data marcante para a recente história política brasileira. Exatamente às 17h40, após 580 dias, o ex-presidente Lula deixou a prisão na sede da Polícia Federal, em Curitiba, onde centenas de militantes estavam concentrados para recebê-lo. Independentemente de viés ideológico ou qualquer outro condicionante, era esperado que uma imprensa minimamente democrática concedesse total cobertura a esse acontecimento, pois, afinal de contas, não é todo dia que se tem a oportunidade de noticiar a saída da prisão de um ex-chefe de Estado.
Pois bem, enquanto a história estava sendo feita na capital paranaense, a Rede Globo – principal emissora do país e uma das maiores do planeta – seguia com a sua programação normal, exibindo a soap opera Malhação. Aliás, escamotear do grande público determinadas pautas é uma prática corriqueira do canal da família Marinho. Trata-se da prática jornalística designada por Perseu Abramo como “padrão de ocultação”, que se refere à ausência de determinados fatos na produção da imprensa, não por fruto do desconhecimento, mas de um deliberado silêncio militante.
Durante a ditadura militar, a Rede Globo escondeu as principais atrocidades do regime; nos anos 1980, um comício do movimento Diretas Já, na Praça da Sé, foi noticiado como somente mais um evento em comemoração pelo aniversário da cidade de São Paulo e, recentemente, casos de corrupção envolvendo nomes ligados à direita política foram estrategicamente negligenciados.
Se a Rede Globo conseguiu minimizar o quanto pôde a soltura de Lula no final da tarde, em seu principal noticiário, o Jornal Nacional, não havia como deixar de mencionar o “Lula Livre”. Foi aí que, mais uma vez, entrou em cena a máquina de manipulação da família Marinho. Logo na abertura do telejornal, o âncora William Bonner destacou que “no primeiro dia depois da decisão do STF contrária à prisão de condenados em segunda instância, o ex-presidente deixa a sala em que estava preso na Política Federal em Curitiba”, insinuando uma suposta rapidez na libertação de Lula. Em sequência, Ana Paula Araújo completou: “Além de Lula, o julgamento do STF pode beneficiar outros condenados por corrupção”; o que deu entender que a liberdade de Lula, um direito constitucional, seria um incentivo à impunidade.
No entanto, o que mais chamou a atenção foi o fato de o primeiro bloco, tradicionalmente dedicado a notícias locais, ter trazido como destaque uma questão internacional: os trinta anos da queda do Muro de Berlim. Como dizia a minha avó: “para quem sabe ler, um pingo é letra”. Em uma “situação normal”, as três décadas da queda do Muro de Berlim, fato emblemático para a geopolítica global, mas não muito chamativo para o público-alvo de noticiários da TV aberta, receberia uma breve menção no Jornal Nacional, e, mesmo assim, durante os blocos intermediários. Dificilmente seria matéria de abertura. Para se ter uma ideia de como acontecimentos geopolíticos não são destaques na imprensa brasileira, no dia posterior à própria queda do Muro de Berlim, a Folha de S.Paulo, por exemplo, trouxe em sua manchete a tentativa de Silvio Santos em se candidatar à presidência da República, dedicando um espaço secundário ao acontecimento símbolo do final da Guerra Fria.
Por que, afinal de contas, trinta anos depois, a queda do Muro de Berlim despertaria tanto interesse? De uma hora para outra, o noticiário internacional passou a ser importante para o espectador médio do Jornal Nacional, o “Homer Simpson”, segundo palavras do próprio Bonner.
Não sejamos ingênuos, tratou-se da velha estratégia de associar Lula ao “comunismo”, um discurso paranoico típico da Guerra Fria, que voltou à tona nesses últimos anos de “polarização ideológica” e frases como “a nossa bandeira jamais será vermelha”. Desse modo, não foi por acaso que, após anunciar brevemente a liberdade de Lula, o Jornal Nacional partiu para a reportagem sobre a queda do Muro de Berlim. Assim, o autointitulado “cidadão de bem” poderia relembrar sua indignação com o “autoritarismo comunista” e preparar a sua panela para bater quando chegassem as reportagens sobre a soltura de Lula.
Quando a liberdade do ex-presidente, enfim, foi destacada no Jornal Nacional – após matérias sobre robôs jogando futebol, simuladores de capotamentos de automóveis e da previsão do tempo -, foi mencionada a possibilidade de o Poder Legislativo aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permita a execução antecipada da pena após condenação em segunda instância (campanha arduamente defendida pela Rede Globo). Dois parlamentares foram entrevistados sobre essa questão. Ambos a favor da aprovação da PEC. Mais parcial, impossível, pois qualquer jornalismo minimamente democrático abriria espaço para pelo menos dois pontos de vistas diferentes sobre um determinado assunto. Nesse sentido, é sintomática a declaração da deputada federal Joice Hasselmann, nova “melhor amiga” de Manuela d’Ávila, que prometeu “obstruir pautas no Congresso até a votação da PEC da segunda instância”.
No Jornal da Record, que se transformou em uma espécie de noticiário oficial do atual governo, Augusto Nunes, que recentemente agrediu de maneira covarde Glenn Greenwald, fez um discurso panfletário e raivoso: “O ex-presidente, graças a seis ministros do Supremo, deixou de ser presidiário, mas não deixou de ser um condenado em três instâncias por corrupção e lavagem de dinheiro. Lula recuperou o direito de contar mentiras em palanques, mas não será candidato a nada. A ‘Lei da Ficha Suja’, por enquanto, não foi revogada pelo Supremo”. Ainda durante o noticiário da emissora de Edir Macedo, ao ser questionado sobre o fato de Lula não ser o único solto com a decisão do STF, Nunes disparou a sua verborragia costumeira: “O ex-presidente apenas puxa a fila de criminosos que escaparão da gaiola. […] Juristas sérios informam que deve passar de 150 mil os bandidos devolvidos às ruas. É o maior ‘saidão’ da história. Os brasileiros decentes que tranquem as portas e escondam dinheiro”.
Ora, conforme bem frisou no Twitter a professora e ativista Biazita Gomes, “O STF não votou contra a punição de bandidos. Ele votou contra o cumprimento da pena de forma compulsória em segunda instância. A decisão do STF não se aplica em crimes contra a vida e condições em tribunais do júri”. Portanto, as postagens compartilhadas nas redes sociais sobre o habeas corpus para Alexandre Nardoni ter sido concedido a partir da mesma decisão que beneficiou Lula ou que, assim como o ex-presidente, também seriam soltos milhares de assassinos, pedófilos, traficantes e estupradores, não passam de notícias falsas reverberadas pelos setores conservadores da população. A prisão de indivíduos que, em liberdade, podem apresentar algum tipo de perigo para a sociedade, é “preventiva”, não tem nada a ver com a segunda instância.
Como era de se esperar, o “Lula Livre” também incomodou a imprensa escrita. No dia seguinte à soltura do ex-presidente, os principais jornais impressos do Brasil trouxeram manchetes semelhantes: “Após 580 dias, Lula deixa prisão e ataca PF, Lava Jato e Bolsonaro” (Folha de S.Paulo); “Lula deixa prisão, ataca Moro e Lava Jato e reacende polarização” (O Estado de SPaulo); “Solto, Lula ataca Lava Jato e Bolsonaro, que evita confronto” (O Globo).
Ao contrário do noticiado pelo jornal O Globo, em sua conta no Twitter, Jair Bolsonaro atacou Lula: “Não dê munição ao canalha, que momentaneamente está livre, mas carregado de culpa”. Minutos depois, Carlos Bolsonaro escreveu em seu perfil: “Calma, cambada de bandido, o Brasil não é de vocês! Comemorem, criminosos! Estão liquidados política e criminalmente! O Brasil vai dar certo!”.
Para a Folha de S.Paulo, a derrubada pelo STF da prisão após segunda instância (o que significa simplesmente “cumprir a Constituição”) é um “retrocesso penal”. Já o Estado de S.Paulo destacou que “apesar de a nova narrativa disponível na praça tentar transformar Lula no ‘Mandela brasileiro’, capaz de unir o país, os petistas mais lúcidos sabem que ela não irá prosperar” e “a alta rejeição a Lula, identificada pelas pesquisas, não deve diminuir”. Nesse mesmo periódico, uma ressentida Vera Magalhães apontou que “Lula solto – e não livre, como se tenta falsamente vender na narrativa triunfalista montada pelo PT – vai exacerbar a polarização entre os extremos estridentes da sociedade: de um lado, bolsonaristas revoltados clamando pelo fechamento do STF e, de outro, viúvas do lulopetismo ignorando que Lula foi condenado em duas instâncias e teve a condenação confirmada pelo STJ por crime comum”.
A imprensa brasileira, porta-voz da elite econômica, teme a chamada “polarização”, pois ela exacerba a luta de classes, motor da sociedade capitalista, realidade que os grupos dominantes fazem de tudo para escamotear, com o intuito de naturalizar as desigualdades sociais e impedir que os setores populares se rebelem contra o sistema. Por mais conciliador que possa ser, o passado de líder sindical – ao contrário de políticos da “esquerda classe média” como Haddad, Freixo e Manuela d’Ávila – faz com que Lula seja capaz de canalizar as demandas populares e ofereça, de fato, uma oposição consistente à política de terra arrasada colocada em prática pelo atual governo. Não por acaso, no jornal O Globo, Ascânio Seleme afirmou que “Lula, solto, será o adversário que Bolsonaro não teve”; e Miriam Leitão escreveu sobre a necessidade (para as elites) de que Lula “erga pontes”, em vez de “radicalizar”.
Enfim, Lula está livre, mas a grande mídia, não. Continua presa às amarras ideológicas, aos interesses do grande capital, ao ódio de classe, à subserviência em relação às potências globais e, sobretudo, às coberturas tendenciosas e enviesadas que, segundo dizia o saudoso Alberto Dines, transformam notícias (que, teoricamente, deveriam se limitar à apresentação dos fatos) em verdadeiros editoriais.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.