Um fato recente e inédito nas relações de um presidente da República com os meios de comunicação não mereceu de nós, jornalistas, o devido peso. Não, não se trata da ‘entrevista exclusiva’ concedida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao apresentador Ratinho, do SBT, veiculada na sexta-feira, dia 30 de abril. Mas teve a ver com ela: divulgada a intenção do presidente de receber Ratinho na Granja do Torto para uma sessão de música sertaneja, churrasco e entrevista, o apresentador Jô Soares resolveu cancelar o programa que ele próprio faria com Lula na quarta, dia 28, e que iria ao ar no mesmo dia pela Rede Globo.
Até onde a vista alcança, é a primeira vez em quase 115 anos de história da República que uma entrevista agendada com o chefe de Estado é cancelada, unilateralmente e sem cerimônia, por quem deveria entrevistá-lo. O episódio teve a ver, naturalmente, com a frenética disputa por índices de audiência na TV, com a rivalidade Globo-SBT e com as conhecidas dimensões do ego de Jô Soares. E, embora arranhe a imagem de algo que não pertence a Lula, mas é um patrimônio público – a instituição da Presidência –, acabou servindo de lição ao presidente: entre outras coisas, é nisso que dá querer fugir da responsabilidade de prestar contas ao país em entrevistas coletivas a intervalos regulares, transmitidas ao vivo para todo o país, como se faz nas democracias, preferindo, em vez, outros expedientes, inclusive ‘conversas’ com apresentadores dispostos a tudo, menos a fazer perguntas incômodas.
O jornalista Luiz Weis, com a costumeira pertinência, tratou do tema na edição anterior deste Observatório, antes de o programa de Ratinho ir ao ar [veja remissão abaixo]. Weis acertou na mosca ao prever que Lula optara ‘por encenar uma sabatina com quem de forma alguma o colocará contra a parede’. De fato. Ao longo da longa peroração do presidente, que não trouxe uma única e escassa novidade, algumas das interrupções do apresentador tiveram o seguinte e transcendente teor: ‘Exatamente…’; ‘é mesmo…’; ‘isso é importante…’; ‘é…’; ‘que beleza!’ Intervenções levemente mais incisivas, quando ocorreram, estiveram a cargo de perguntas previamente gravadas com pessoas comuns, que queriam saber sobre temas como segurança pública, reforma agrária e microcrédito.
Compromisso público
Depois de começar seu programa tendo como fundo, bem a seu estilo, o Hino Nacional em ritmo de xaxado, e de encaminhar uma jovem do auditório para ter seu visual remodelado pela produção do programa, a próxima atração de Ratinho foi sua visita a Lula. A exibição da expedição à Granja do Torto confirmou plenamente o que o apresentador já dissera à Folha de S.Paulo – que a entrevista tinha ocorrido em clima de ‘alto astral’ e sem formalidades. Deus sabe que sim. Tanto que, desinibidamente, Ratinho chamava o presidente da República, perante milhões de telespectadores, de ‘você’.
Com todo o respeito ao presidente, é o fim da picada. Diante de quadros como esse, de pouco adiantam as esforçadas estatísticas que a Secretaria de Imprensa da Presidência coloca na página do Planalto na internet para mostrar que Lula já concedeu 51 entrevistas desde a posse, 40 em 2003 e as restantes este ano. Belo número, aparentemente. Mas basta conferir no endereço (http://www.info.planalto.gov.br/), e clicar no item ‘Dados estatísticos’, na coluna da esquerda, para verificar quantas vezes o presidente, para engrossar os números, recorreu a ‘conversas informais’ com jornalistas, a ‘encontros’, a entrevistas conjuntas com outros chefes de governo e a outros expedientes mais confortáveis para ele do que as entrevistas coletivas.
Faz parte dos deveres do cargo de presidente prestar contas ao país. Não basta a Lula, para tanto, lançar mão dos incontáveis monólogos que pronuncia, a respeito de todos os assuntos e diante de todos os públicos. Nem escolher a quem na mídia quer falar, em entrevistas individuais ou a pequenos grupos. Claro que esses recursos são legítimos e corriqueiros. Só que o presidente tem a obrigação de adotar o hábito de encarar, a intervalos regulares e razoáveis, entrevistas coletivas com jornalistas sérios, sem compromissos outros que não com seu público – o leitor/telespectador/ouvinte/internauta – e dispostos a questioná-lo.
Dever político, dever moral
O presidente parece sofrer, no poder, os efeitos do peculiaríssimo relacionamento que manteve com a mídia, especialmente com um numeroso grupo de repórteres, ao longo de sua carreira. Como escreveu Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, em artigo recente (‘Abaixo o jornalismo’, 15/4/04, veja remissão no pé desta página), ‘ao contrário das aparências, Lula tem pouco treino para a discussão de pontos de vista – e não apenas como resultado da inexperiência administrativa. Sempre foi cercado por uma corte de bajuladores. Sempre foi poupado pela imprensa e pelos adversários. Sempre se beneficiou de um preconceito invertido, o de que, sendo um líder ‘autêntico’ e ‘puro’, não poderia ser questionado ou interpelado’.
É claro que a grande imprensa não poupou Lula nas páginas de opinião de jornais e revistas – pelo contrário, ele recebeu ali duro combate, viu-se objeto de ataques e, com freqüência, de preconceito. Mas seria hipócrita negar, e foi a esse fato que Frias Filho provavelmente aludiu, que o líder sindical que emergiria na década de 1970 mereceu ao longo de muitos anos a complacência e até a cumplicidade de inúmeros jornalistas, sobretudo repórteres responsáveis pela cobertura de suas atividades como dirigente metalúrgico e, posteriormente, dirigente político.
Não terá sido por outra razão que ocorreu, durante o governo de Itamar Franco, o célebre episódio do desabafo de Lula referindo-se ao presidente de então como ‘filho da p.’. Um repórter, por sinal da Folha, escreveu em sua matéria o que outros ouviram e, com grande naturalidade, deixaram passar. A perplexidade de Lula e do PT com o vazamento embutia a presunção de que os repórteres que acompanhavam o líder eram, sempre, ‘companheiros’ – como, aliás, efetivamente ocorria com a maioria.
Compreende-se a relutância do presidente em enfrentar, no auditório do Palácio do Planalto, uma platéia bem diferente, nada disposta a ouvir monólogos, e que certamente vai questionar seu governo, perguntar sobre a paralisia da administração, cutucar sua falta de rumos, discutir resultados, cobrar a distância entre as promessas do candidato e a realidade do presidente. Político nenhum gosta disso. Por que Lula gostaria? Mas essa platéia de profissionais de imprensa estará, ali, cumprindo a missão mais nobre e relevante da mídia, que é a de servir ao público sendo os olhos e ouvidos do país.
Falta Lula cumprir a sua parte. Relacionar-se com a mídia da forma como o presidente tem feito é, na verdade, esconder-se da imprensa, fugindo a um dever político e moral que ele tem diante do eleitorado.
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Jornalista