Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lula sonega um direito da sociedade

A rejeição pelo Congresso da absurda e autoritária criação de um Conselho Federal de Jornalismo para ‘orientar, fiscalizar e disciplinar’ a atividade dos jornalistas é uma boa notícia de fim de ano. E o presidente Lula, que formalmente apresentou o projeto ao Congresso por solicitação da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), autora da idéia, merece crédito por haver sido sensível aos clamores que se levantaram por todo o país contra a iniciativa e ter colaborado para sepultá-la, via um acordo de líderes partidários.

Ainda assim, o presidente termina o ano com um saldo negativo em suas relações com a imprensa. O próprio Lula, sem que nada lhe tivesse sido perguntado, admitiu-o implicitamente durante a visita que fez dias atrás ao Comitê de Imprensa do Palácio do Planalto, cujas instalações acabam de passar por uma reforma. ‘Vocês podem ter certeza’, disse o presidente, ‘de que os erros que aconteceram na nossa relação neste ano não acontecerão no ano que vem, que os acertos serão aprimorados (…)’.

A imprensa, Deus sabe, cometeu erros. Mas a idéia, aqui, é focar nos do presidente. Nesse sentido, seu grande ‘erro’ em 2004 foi o mesmo de 2003: ele completa dois anos de governo sem ter concedido uma única e escassa entrevista coletiva à imprensa digna desse nome.

O café da manhã em que ele recebeu três dezenas de repórteres credenciados no Palácio – pela primeira vez em dois anos, diga-se – não conta. Lula falou sobre diversos temas, mas não chegou nem longe de conceder uma entrevista coletiva.

O próprio clima ameno de um café da manhã em que o presidente era anfitrião colaborou para tanto. Também não havia a presença da forte bancada de colunistas políticos, comentaristas e editores que certamente acorreria a uma coletiva. Além de tudo, o encontro não pôde ser fotografado, nem e as respostas do presidente puderam ser gravadas em vídeo ou áudio. Lula, dessa forma, continua devedor.

Curioso paradoxo. Temos, de um lado, o mais loquaz presidente a ocupar o posto desde o fundador da República, marechal Deodoro da Fonseca, em 1889: Lula fala sobre tudo e para todos, sob qualquer pretexto, a qualquer hora e em qualquer lugar. Em geral, de improviso – improvisos freqüentemente canhestros, que abrigam, na peculiar gramática presidencial, as tradicionais e paupérrimas metáforas ligadas ou ao futebol ou à família. Quando tem diante dos olhos textos previamente escritos por assessores, nem assim o presidente se satisfaz – e, alegremente, abandona o trabalho árduo de gente que mergulhou fundo no assunto para voejar sobre temas nem sempre pertinentes à solenidade que está presidindo.

O churrasco com Ratinho

Esse presidente extraordinariamente falante, porém, vem sendo de uma parcimônia notável quando se trata de cumprir a obrigação de submeter-se a entrevistas coletivas periódicas e livres de precondições, como ocorre com os dirigentes de democracias de verdade.

Quando conversa com jornalistas, Lula o faz com grupos previamente selecionados – mesmo assim, em raríssimas ocasiões – ou em curtos diálogos em intervalos de solenidades, ou a caminho de algum evento, ou no exterior, muitas vezes na presença (limitadora para os jornalistas, no caso) do presidente anfitrião, e de olho no relógio. Entrevista coletiva, que é bom, nada.

Lula prefere, na verdade, ‘entrevistas’ como a célebre que concedeu ao apresentador Ratinho em meio a uma longa sessão de churrasco e música sertaneja na Granja do Torto, exibida a 30 de abril pelo SBT: estava ali, à mão, um homem de TV dócil, compreensivo e ‘amigo’, cuja última prioridade era colocar Lula contra a parede a respeito de qualquer questão relevante para a opinião pública.

As entrevistas coletivas, especialmente num regime presidencialista como o nosso, são indispensáveis. No parlamentarismo, o real detentor do poder – o primeiro-ministro – é um parlamentar e, como tal, está diuturnamente enfrentando o questionamento de seus colegas no Parlamento. O público, como se dá no Reino Unido, assiste a tudo pela televisão, muitas vezes ao vivo. Execução do orçamento, prioridades do investimento público, educação, segurança, rumos da política externa, mancadas políticas, escândalos – nenhum tema escapa aos parlamentares, nenhuma pergunta incômoda deixa de ser feita ao governante. Sem contar, é claro, que todos, sem exceção, falam regularmente com a imprensa.

No regime presidencialista brasileiro, o máximo a que se chega nesse terreno são os depoimentos de ministros no Congresso, sujeitos a tantas condicionantes constitucionais e legais que são raros, e quase sempre anódinos.

O presidente, excetuados casos extremos e dramáticos como um processo de impeachment que requeira um depoimento de corpo presente no Legislativo, só se explica à nação em mensagens ao Congresso e em discursos, aos quais, naturalmente, dá o tom que bem entender. Sabatina, de fato, para valer, só ocorre diante de um bom magote de jornalistas independentes.

Apertando George W. Bush

É o que se dá com grande freqüência e regularidade em países como o Chile, o México, a França (com seu presidencialismo parlamentarista) e, claro, os Estados Unidos, mesmo sob o império arrogante de George W. Bush. Por sinal, quem assistiu ao documentário Fahrenheit 9/11, do controvertido cineasta Michael Moore – em cartaz em várias cidades brasileiras, e já disponível em locadoras –, pôde testemunhar o desembaraço com que os jornalistas apertam o inquilino da Casa Branca, inclusive sobre sua propalada pouca disposição para o trabalho duro.

A certa altura aparecem cenas em que Bush, descansando em seu rancho de Crawford, no Texas, é perguntado pelos jornalistas exatamente sobre isso. O presidente sorri amarelo, procura desconversar, diz que, ainda que esteja no rancho, trabalha. Um repórter mais incisivo insiste: ‘Mas o que é que o sr. vai fazer hoje?’ Bush refere-se a ‘decisões importantes’ sem esclarecer sobre o quê, não consegue responder nada concreto, e, naquele dia, o país acaba tendo uma notícia importante sobre o poder.

É desse tipo de embate que Lula tem, sistematicamente, fugido, como já lhe foi cobrado muitas vezes por colegas jornalistas e como se cobrou neste espaço, pelo mesmo signatário, a 4 de maio de 2004, no extenso artigo ‘Lula está se escondendo da imprensa’ [veja remissão abaixo].

E é preciso que nós, jornalistas, continuemos insistindo na necessidade do hábito das coletivas – neste Observatório, em outros sites, nos jornais, nas revistas, sempre que possível na TV e no rádio. Do círculo de assessores do presidente não se deve esperar grande coisa.

O secretário de Comunicação da Presidência, Luiz Gushiken, tem a cabeça em outra parte: sua prioridade é como gastar a gorda verba pública destinada à publicidade oficial (quase todos os governos assim encaram a ‘comunicação’), com o que chama de ‘parceria público-privada’ em campanhas cívicas curiosamente aparentadas às promovidas durante a ditadura militar, com um planejamento estratégico (parte de suas atribuições) que igualmente recende a formulações da Escola Superior de Guerra no período autoritário.

Não se trata de privilégio da mídia

Aliás, um parêntese: quais seriam, exatamente, as credenciais de Gushiken – ex-bancário, ex-dirigente sindical, ex-presidente do PT, formado em Administração de Empresas, ex-consultor de fundos de pensão – para dirigir a comunicação do governo? Como se sabe, ele não se limita a tanto, e também costuma, periodicamente, dar lições a respeito do assunto aos profissionais de imprensa. De onde lhe viria a autoridade?

Se nada se pode esperar de Gushiken quanto a uma mudança de comportamento de Lula, certamente, e por outras razões, é o que igualmente sucede com o novo secretário de Imprensa da Presidência, Fábio Kerche, subordinado ao secretário de Comunicação.

Jovem, cheio de energia e, para quem o conhece, claramente bem-intencionado, o cientista político Kerche, no entanto, não tem ascendência sobre o presidente. Nem de longe desfruta do acesso a Lula de que dispunha seu antecessor, Ricardo Kotscho, jornalista competente e respeitado, velho amigo do presidente e da sua família.

Kotscho, que deixou o posto em novembro alegando ‘razões pessoais’, costumava dizer que Lula o cobrava por ser mais um secretário ‘da’ imprensa – ou seja, promover os interesses da mídia junto ao governo – do que um secretário ‘de’ Imprensa da Presidência. Mas nem sua proximidade com Lula levou o presidente a cumprir o ritual democrático de submeter-se com regularidade à mídia – e não são poucos os colegas a se queixar de que o ex-secretário, apesar da brincadeira presidencial, fazia justamente o contrário do que Lula reclamava.

O porta-voz da Presidência, André Singer, também é, como Kotscho, profissional sério, experiente e respeitado. No começo do mandato de Lula, falava com desembaraço e pertinência sobre uma grande gama de questões em andamento no governo. Além do mais, tinha um grande acesso a Lula, participando da maior parte das audiências do presidente, de modo a inteirar-se das entranhas do governo. Mas, à medida que Lula se soltava em incontáveis discursos e demonstrava crescente apreço à própria voz, esvaziou-se, naturalmente, seu papel de porta-voz. Singer desapareceu das emissoras da TV e é duvidoso que sua influência sobre Lula vá ao ponto de levar o presidente a mudar de curso.

E, no entanto, o presidente deveria fazê-lo. Lula não está, com sua atitude de fechar-se em copas, atingindo privilégios da mídia como instituição ou de nós, jornalistas, como profissionais: ao fugir do questionamento independente da imprensa, ele sonega um direito essencial à opinião pública.