A mesma imprensa conservadora que, ainda no mês passado, fez de tudo para esvaziar a bola de Lula na questão da auto-suficiência em petróleo, agora descarrega nas costas do presidente o incidente do gás boliviano. Em abril passado, na semana em que a Petrobras comemorava 1,9 milhão de barris/dia produzidos em território nacional, Veja e O Estado de S. Paulo encontraram todo tipo de desdouro para o governo federal. Afinal, a economia do Brasil não crescera, afinal surgiu o motor a álcool – assim, bastar-se não tem mérito, argumentaram. A inveja oposicionista fez questão de dividir os louros do feito, foi buscar vários outros brasileiros que ajudaram a Petrobras nestes 70 anos de trabalho. No palanque da auto-suficiência foram inseridos até Monteiro Lobato e o poço do Visconde. Agora, diante das medidas intempestivas de La Paz, os mesmos periódicos cobram de Lula uma bravata, uma reação estridente face à nacionalização dos recursos energéticos da Bolívia.
Reconheça-se que o Estadão não deixa de publicar os números da questão e até traz em negrito na primeira página da edição de sábado 6 de maio de 2006 a informação de que no mercado internacional o BTU custa quase 60% mais do que estamos pagando pelo gás ao país vizinho – US$ 5 no lugar dos US$ 3,20 que a Petrobras desembolsa. Isto na melhor das hipóteses, pois chega a valer US$ 10 na Califórnia.
Diante desta numerologia eloqüente, pouco trabalho terá tido Hugo Chávez para insuflar Evo Morales a que fosse atrás de melhores condições para a Bolívia. Os números no mercado mundial de energia, com o barril de petróleo batendo US$ 75, sobem à cabeça dos dirigentes dos países produtores. Os chineses talvez já estejam batendo às portas da YPFB para oferecer créditos, assim como andam fazendo nos confins da África. Por essas e outras nem os Estados Unidos, com toda sua supremacia econômica, conseguem inibir o surgimento de Khadafis, Saddams e Chávez, para ficar nas figuras mais folclóricas.
Além do talão de cheque
Dou um pequeno exemplo de experiência pessoal da arrogância existente nesses ambientes dos poucos fornecedores de energia. Em visita à sede da Iranian National Petroleum Company para vender-lhes guindastes perguntei pelos planos de negócios do cliente para o ano seguinte. O gerente do outro lado da mesa devolveu-me rispidamente que eu não me metesse em questões internas da empresa. Isso foi nos anos 70, com o barril a 12 dólares…
Mas o Estadão cobra de Lula e do Itamaraty que mostrem os dentes a Morales logo no começo do jogo. O prestigioso jornal paulista tem dado destaque, inclusive em alguns de seus editoriais, à diplomacia brasileira dissidente. O embaixador Sebastião do Rego Barros Neto, que já nos representou em Buenos Aires, invoca outros entreveros em que enfrentamos países mais poderosos sem a mesma ‘mistura de discurso ingênuo e ideológico com uma reação titubeante, timorata’. O embaixador fica nos devendo exemplos concretos, provas de que, nesta questão de energia, o Brasil, diferentemente de europeus e americanos, tenha peitado países da Opep em administrações passadas. Rubens Ricupero é um diplomata brilhante que comenta a crise também sentado na platéia, o jornal o entrevistou. O embaixador invoca o contrato assinado com a Bolívia pelo qual a Petrobras investiu US$ 1,5 bilhão no projeto do gasoduto. Evidentemente que La Paz está cuspindo no prato em que comeu, mas precisamos de sangue-frio.
O Brasil tem extraordinária força em relação ao gás boliviano. Aqui está seu único mercado comprador, levaria mais de três anos para se criar um canal de escoamento ao gás boliviano para algum outro porto de exportação. Noticia-se que a Petróleos de Venezuela expande seu escritório de La Paz e forneceria os técnicos que a Bolívia não forma. Ora, será mesmo que das fantásticas reservas do Orinoco e outras jazidas caribenhas ainda sobrariam recursos humanos e empenho exploratório para adiante das primeiras jogadas para a torcida do ‘xeque’ sul-americano? Isso de liderança da América do Sul é missão para mais que talão de cheque.
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Dirigente de ONG, Bahia