Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Macaco, olha o teu rabo

Há momentos no jornalismo brasileiro que nos remetem à atualidade de velhos ditos populares. O proverbial ‘macaco, olha o teu rabo’ deveria estar na capa do manual de redação de editores de todas os grandes jornais. Ele sugere que, antes de emitir um juízo de valor sobre o outro, devemos lançar um olhar sobre nossa trajetória e procedimentos atuais. Se isso vale para pessoas, com certeza se encaixa como luva para conglomerados midiáticos. Ainda mais quando vivemos tempos de cólera. De rancor direitista travestido de indignação ética.


A Rede Globo mal pôde esperar a abertura da 4º Cúpula das Américas, em Mar del Plata, para assestar suas baterias contra a liderança sul-americana mais odiada pelo protofascismo de Washington: Hugo Chávez. No Jornal Nacional de 2/11, o presidente venezuelano foi apresentado como alguém que ‘mudou a Constituição, aumentou o mandato presidencial, nomeou mais 12 juízes para a Corte Suprema e instituiu um rígido controle sobre os meios de comunicação’. Esqueceram de mencionar a tentativa de golpe e o papel ativo das emissoras Venevisión, Globovisión e RCTV. É certo que, em dados momentos históricos, o que a língua separa o método une. E a simbiose não cessa sem rupturas dramáticas.


Dois dias depois, seria a vez de o dublê de comentarista e bufão Arnaldo Jabor tratar Chávez ‘como leão de chácara que ataca os Estados Unidos em nome de um socialismo delirante’, alertando que ‘atrás dele iriam os governos fracassados de Lula e Kirchner’. Numa linguagem desabrida, beirando a vulgaridade, intenções e gestos mostraram quem são os alvos da ofensiva conservadora. Tanto no âmbito interno como no cenário internacional as cartas estão dadas.


Em casa de enforcado


Mas o pior estava por vir. Na edição de 5/11, no jornal O Globo, um pequeno editorial destilava raiva e açodamento, produzindo um texto de péssima qualidade. Algo a ser mostrado a estudantes de Jornalismo como expressão de narrativa condenável, seja qual for a orientação editorial da publicação ou emissora. É legítimo um veículo emitir sua opinião num artiguete, mas a forma como o fez e os adjetivos empregados desnudaram qualquer veleidade de se apresentar como instância de intermediação entre sociedade e Estado. O texto abaixo demonstra a sobreposição de interesses político-empresariais ao direito de informação. Cabe ao leitor concluir se estamos diante de uma construção que objetiva a fiscalização de poderes públicos e privados, assegurando a transparência de relações políticas, econômicas e sociais, ou se vislumbramos a manipulação em estado bruto:




Maradona colocou na biografia a liderança de uma grande manifestação anti-Bush. O jogador pode estar no auge da recuperação física e psicológica, nessa inesperada demonstração de ardor antiimperialista. Mas a Casa Branca esfrega as mãos de contentamento. Afinal, a bandeira do antiamericanismo em Mar del Plata terminou empunhada por um aparentemente ex-viciado em drogas, amigo de Fidel apenas porque este o acolheu numa overdose. E enquanto Maradona dividia os espaços na mídia com as fanfarronices de Hugo Chávez, as Mães da Praça de Maio e Alfonso Pérez Esquivel, vítimas reais da ditadura argentina, contra a qual Maradona nada fez, ficaram em segundo plano.


Causa espécie a tentativa de desqualificar a ação política a partir da condição de dependente químico de seu protagonista. Pior, resvala para a calúnia ao empregar o advérbio ‘aparentemente’. O editorialista confunde contundência com linguajar rasteiro, com ofensa pessoal. E se alguma publicação afirmasse que o aparentemente ex-alcoólatra Bush, ao fim da cúpula, não teve motivos para esfregar as mãos de contentamento? Qual seria a reação dos sóbrios editores de O Globo?


Certamente o artiguete foi pedido às pressas. Só isso explica tanta desinformação sobre o jogador argentino. Ao afirmar que Maradona nada fez contra a ditadura, o jornal da família Marinho ignora que, ainda atuando, o atleta se notabilizou por críticas contundentes ao governo. Foi sua combatividade que o levou a Fidel, e não uma ‘overdose’. Talvez o ambiente de trabalho produza falhas dessa monta. Ao misturar jornalismo com entretenimento, o profissional do Globo talvez tenha confundido doses e ilhas. Mas isso é ilação para revista de fuxico.


O que chama a atenção do leitor mais atento é a ignorância de outro provérbio: ‘Não se fala de corda em casa de enforcado’. Ao relembrar as vítimas da ditadura militar no país vizinho e perguntar o que o jogador fez por elas, o inspirado editor mexeu em vespeiro. Cabe indagar se a interpelação é extensiva ao maior monopólio informativo da América Latina. O que a Globo fez contra a ditadura brasileira?


Aula de ruptura


Por demais conhecidas, as relações entre o terrorismo de Estado que se instalou em 1964 e a Rede Globo serão aqui apresentadas em tópicos:


1) A emissora de Roberto Marinho começou a operar em 1965, sustentada por um acordo técnico e financeiro com o grupo Time-Life, cujo escopo foi motivo de CPI no Congresso Nacional no ano seguinte. Sarney, no mesmo ano, apoiado por Castelo Branco e tecendo loas aos ditadores de plantão, tornava-se governador maranhense. Cinco anos depois, a Globo, esteio simbólico do regime, completava em seu noticiário a ação propagandística do governo;


2) O noticiário da TV Globo foi o porão informativo em que ficaram represadas as vozes dos que se opuseram ao regime e o grito dos que por ele foram torturados;


3) Após o atentado do Riocentro, uma bomba foi subtraída entre duas edições, em belo exemplo de apoio logístico;


4) Com a Proconsult, empresa contratada pelo TRE para apurar os votos da eleição direta para governador do Eestado do Rio, em 1982, tentou fraudar o resultado para dar a vitória a Moreira Franco, candidato do regime militar;


5) Sabotou, enquanto pôde, a campanha das Diretas-já, em 1984, terminando por ser fiadora de uma transição por alto;


6) Como recompensa, ganhou a NEC do Brasil, um dos principais fornecedores de equipamentos de telecomunicação para o governo, além de inúmeras afiliadas e repetidoras que constituiriam seu império.


Como se vê, pequenas linhas podem reavivar a memória. A Globo não costuma se sair bem quando a história não é contada por ela própria. Fora de sua editora, o que surge é um prontuário de crimes contra a cidadania. Para implantar programas sociais que beneficiam 75% da população venezuelana, Chávez teve que enfrentar o conluio entre a mídia privada e as oligarquias. Pode, mantidas as especificidades de cada formação, ter dado uma aula de ruptura. Sua exemplaridade é a causa do ódio que provoca no baronato da imprensa brasileira. Macacos que não olham o próprio rabo costumam cair dos editoriais que perpetram.

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Professor-titular de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro