Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Maio de 68 no retrovisor do Le Monde

Era maio de 1968. A guerra do Vietnã dividia a primeira página com as manifestações dos estudantes no Quartier Latin, em Paris. O movimento estudantil se associa ao movimento operário para desencadear a maior greve geral que a França já viveu. No maio de 68 francês, os trabalhadores fazem conquistas históricas: aumento do salário mínimo, redução do tempo de trabalho e diminuição da idade de aposentadoria.

O jornal Le Monde deu um presente inestimável aos leitores durante o mês de maio: numa página interna, editou todo dia a primeira página do mesmo dia de maio de 1968. Dia a dia, pudemos acompanhar a evolução daquele maio agitado e particularmente fecundo para o movimento social francês.

O Le Monde de 68 era outro jornal. Não no espírito, pois era o mesmo cotidiano de jornalistas, com texto analítico, fundado por Hubert Beuve-Méry, ainda vivo. Mas, na forma, era outro. Do atual, tinha apenas o título em letras góticas. A forma gráfica era severa, não havia imagens. Depois de 68 houve mais de uma reforma gráfica introduzindo desenhos, fotos e, por último, cores no projeto gráfico.

Incêndios e barricadas

Naquele ano, o mundo era mais importante que a França para os jornalistas que fechavam a primeira página. Foi preciso que estudantes e operários fizessem a maior greve geral da história do país e enfrentassem as forças policiais nas ruas da capital para que a manchete principal passasse a ser não os encontros de Paris entre americanos e norte-vietnamitas para negociar a paz (que só veio anos depois), mas os acontecimentos que fizeram o que se convencionou chamar o ‘Maio de 68’ e que nas manchetes apareciam como violentos incidentes do Quartier Latin ou greves nas fábricas.

À medida que passam os dias, a primeira página vai refletindo o agravamento da situação. As manchetes dão o tom: ‘Para protestar contra o fechamento da Sorbonne e as prisões, manifestações e greves são organizadas pelos estudantes e professores. Violentos enfrentamentos e numerosos feridos no Quartier Latin’.

Os maoístas defendem a união de estudantes e trabalhadores depois de uma passeata gigantesca na qual os manifestantes cantam a Internacional. Na dispersão, os estudantes enfrentam mais uma vez os policiais com paralelepípedos arrancados das ruas. Era a arma dos estudantes. Carros são incendiados, barricadas são erguidas. A França toda se agita, as fábricas paralisam as atividades. Nas ruas, estudantes e operários enfrentam os policiais.

Prisão temporária

Para o leitor de 2008, o jornal fez um excelente trabalho de síntese da atualidade de 1968. Todo dia, essa primeira página de maio de 68 tinha uma coluna à esquerda explicando o contexto político na França e no mundo. Quem é Enoch Powell que aparece no título do artigo de Alain Jacob no dia 4? Resposta na coluna da esquerda.

No mesmo dia, num pequeno editorial chamado ‘Au jour le jour’, publicado diariamente na primeira página na época, e assinado por Robert Escarpit, o articulista se pergunta se a revolta estudantil que começara em Nanterre é culpa de Voltaire. Ele termina desejando que no futuro, ‘quando o senhor Daniel Cohn-Bendit e seus amigos forem deões, reitores, ministros ou equivalente, possam enfrentar a revolta de seus próprios estudantes com tanta moderação quanto a que foi demonstrada em relação a eles em Nanterre’.

Na contextualização, o jornal explica que nos dias que precederam o mês de maio, a França parecia tão calma que tanto o presidente Charles de Gaulle quanto o primeiro-ministro Georges Pompidou programaram viagens ao estrangeiro. É verdade que desde 22 de março a universidade de Nanterre estava em greve e fora fechada em 2 de maio por ordem do reitor. Mas, no início, o movimento estudantil parecia algo controlável e restrito. Ao tentarem estender o movimento para a Sorbonne, em 3 de maio, alguns líderes estudantis, entre eles Cohn-Bendit são presos. Mas são liberados horas depois. E saem prontos para continuar o movimento.

Ruas asfaltadas

Entre os textos republicados recentemente, um do jornalista Pierre Viansson-Ponté, publicado no Le Monde de 15 de março de 1968, não pode deixar de provocar um sorriso no leitor de 2008. Ele começa seu artigo dizendo:

‘O que caracteriza atualmente nossa vida pública é o tédio. Os franceses se entediam. Eles não participam nem de perto nem de longe das grandes convulsões que sacodem o mundo, a guerra do Vietnã os comove, mas ela não lhes diz respeito verdadeiramente’.

Um mês e meio depois, os franceses não podiam mais se queixar de tédio. Paris estava em chamas, o país parecia um vulcão em erupção.

Num documentário sobre maio de 68, recentemente mostrado num canal de TV, pode-se ver o primeiro efeito concreto da revolta nas ruas de Paris. O governo mandou asfaltar todas as ruas da capital.

Nunca mais os estudantes teriam essa arma à mão para lançar na polícia. Nunca mais os paralelepípedos voariam como naquele início de primavera.

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Jornalista