A reportagem do New York Times que revelou a existência do programa secreto de escutas extrajudiciais ordenado pelo presidente George W. Bush em 2002 poderá resultar em mais danos para a credibilidade do jornal do que em obstáculos para o governo continuar a grampear comunicações internacionais de cidadãos americanos, via telefone ou internet, em nome do combate ao terrorismo. Na semana passada, um tribunal federal de Detroit declarou o grampo inconstitucional. Juristas e mesmo críticos do programa de escuta previram que a decisão será revertida por tribunais superiores, dada a má qualidade da argumentação usada pela juíza incumbida do processo.
O problema não é a veracidade das informações apresentadas pela matéria do Times, que valeu o prêmio Pulitzer de reportagem do ano passado a seus autores, James Risen e Eric Lichtblau, mas a mentira que o jornal contou aos eleitores sobre quando obteve a informação e as razões pela qual segurou sua publicação. Na reportagem, que saiu na edição de 16 de dezembro de 2005, o Times informou que ‘adiou a publicação por um ano’ em consideração aos argumentos oficiais de Washington, segundo os quais a exposição do programa secreto causaria sérios prejuízos a um programa vital para proteger o país contra novos ataques terroristas.
Contudo, no domingo (13/8), o ombudsman, ou editor público, do jornal, Byron Calame, que fez rasgados elogios à matéria numa coluna de janeiro passado, confirmou suspeitas levantadas por fontes anônimas citadas por outros jornais nos últimos meses segundo as quais o Times tomou conhecimento e confirmou a existência do programa de escuta secreto pelo menos quatorze meses antes de publicar a matéria. Isso significa que o jornal tinha a informação antes da eleição presidencial de novembro de 2004, que Bush ganhou do senador democrata John Kerry por apertadíssima margem no colégio eleitoral que define o resultado do pleito, e optou por não publicá-la.
Tentativa de contemporização
Nunca se saberá se a revelação do grampo antes da eleição teria afetado o resultado. O editor do Times, Bill Keller, que inicialmente justificou a decisão como uma questão de ‘equilíbrio’, indicou posteriormente que o impacto da história das eleições entrou nos seus cálculos ao afirmar que, dada a disposição de tolerar o grampo extrajudicial que o público demonstrou em pesquisas de opinião, a publicação da reportagem poderia ter até facilitado a reeleição do presidente.
Pode ser. Mas esse argumento e as mudanças da explicação que Keller deu sobre os motivos de sua decisão de segurar a matéria aumentaram o problema que credibilidade dele próprio e do jornal junto aos leitores do Times, que são em sua esmagadora maioria anti-Bush. Entre estes, a gota d’água foi a mais recente justificativa de Keller publicada por Calame, o editor público, no domingo (13/8).
Numa aparente tentativa de trivializar e encerrar a controvérsia, o editor-executivo do Times tratou do episódio como ‘assunto velho’, como costumam fazer políticos em apuros, e afirmou que a explicação falsa sobre a data da obtenção da informação, incluída na reportagem de dezembro de 2005, resultou de ‘uma redação deselegante’ do texto. ‘Não me lembro o que ia pela minha cabeça na época’, escreveu ele num e-mail a Calame.
A declaração de Keller e a disposição de contemporizar demonstrada pelo próprio Calame provocaram fortes reações dos leitores e forçaram o editor público a voltar ao assunto no último domingo, publicando trechos dos vários e-mails que recebeu.
Terceira vez
‘O que os editores sabiam, quando eles souberam e por que o Times colocou-se na posição de mentir para os seus leitores?’, perguntou Charles W. Puckhmahn, de Seattle, parafraseando uma frase famosa das investigações do escândalo do Watergate pelo Senado americano. ‘Essa gente não aprendeu com o desastre de Judith Miller que a honestidade é a melhor política?’, insistiu ele, numa referência a uma veterana repórter do jornal próxima da administração que foi despedida no ano passado, por causa das mentiras que contou ao jornal e aos leitores, depois de tentar virar mártir da liberdade de imprensa e passar alguns meses na cadeia por recursar-se a falar a um júri de instrução sobre o vazamento da identidade de uma agente da CIA por altos funcionários da Casa Branca.
Jonathan Dixon, de Santa Fé, Novo México, recordou a Keller que ‘mentir é deselegante’ e o repreendeu por sua pretensão de tomar uma decisão ‘equilibrada’ ao engavetar a informação que o jornal possuía sobre o program de escuta secreta. ‘O trabalho de Keller é fornecer informação acurada e deixar que cidadãos bem informados votem responsavelmente pelo bem-estar do nosso país’, afirmou Dixon.
Esta é a terceira vez que a credibilidade do mais influente jornal dos EUA é posta à prova desde o escândalo das reportagens inventadas pelo reporter Jason Blair, em 2003, que resultou na troca do comando da redação, na ascensão de Keller e na criação do cargo de editor público.
******
Correspondente do Estado de S.Paulo em Washington