O jornalista e escritor Geneton Moares Neto faz relato imperdível sobre os bastidores de uma entrevista que o dramaturgo, cronista e jornalista Nelson Rodrigues lhe concedeu. Era o dia 1º de maio de 1978. Brasil e Peru jogavam no Maracanã. Está reproduzida neste Observatório da Imprensa. Meu propósito, hoje, é apenas chamar a atenção dos leitores para a deliciosa matéria, fazendo destaques que julgo indispensáveis.
Começo pelo seguinte: o estilo. Não vamos exigir que todos escrevam como um gênio. Gênios são raros. Mas quem reconhece o brilho do gênio, brilha também. E este é o caso de Geneton Moraes Neto. Ao destacar as sutis complexidades e singularidades do grande cronista, o jornalista também se destaca num requisito indispensável: sabe reconhecer o talento alheio por onde passa e traduz tal sabedoria em palavras muito bem tecidas.
Hoje, as duas características estão ficando raras, sobretudo entre os jornalistas mais jovens, muito embora encontremos entre a juventude profissionais interessadíssimos, talentos, se esforçando muito para bem cumprir seu ofício. Não raro, porém, estão submetidos a quem lhes poda as iniciativas. E por quê? Porque muitos chefes protegem aqueles que são mais parecidos com eles, sem confiar na ousadia dos inventivos.
Quem entrevistaria alguém com o perfil de Nelson Rodrigues? Ele estava velho e doente, morreria dali a dois anos, era tido como reacionário e aqueles que o acusavam disso não viam ou não queriam ver o talento dele.
‘Dúvida devastadora’
Os jornais perdem leitores a cada dia. Atribuem à internet a decadência das tiragens. Em alguns casos, é verdade, mas não em todos. Os cadernos especializados – uma conquista da imprensa moderna – estão se tornando quase ilegíveis. A página de economia não pode ser entregue a economistas pela mesma razão que a de política não deve ser de responsabilidade de políticos, nem a de esportes a esportistas, nem a de livros a quem está tentando há décadas aparecer mais do que aqueles que deveriam ser objeto de entrevistas, matérias etc.
Precisamos recuperar o saber eclético dos antigos jornalistas, principalmente daqueles que não foram customizados pelos cursos superiores. E entre aqueles que cursaram Jornalismo ou estão cursando, propiciar-lhes aprendizagem adicional com jornalistas de verdade, como esse Geneton Moares Neto.
Vejamos a abertura da bela matéria que ele fez com Nelson Rodrigues:
‘Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues (1912-1980) começou com uma dúvida devastadora: por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira? Não é possível, deve ter havido algum engano – eu pensava com meus botões, enquanto caminhava pelas calçadas do Leme, na beira-mar, no Rio de Janeiro, em direção ao apartamento do homem.’
Recursos necessários
Quanta informação em tão poucas linhas! E que contraste de sua humildade com a arrogância de hoje! Foi o primeiro e último encontro com o gênio. O dramaturgo ganhava a vida escrevendo sobre futebol. Mas marcou a entrevista durante um jogo da Seleção brasileira. E o jornalista preparava-se mentalmente para enfrentar a fera com aquela ‘dúvida devastadora’.
Não quero exagerar, mas é frequente que: (1) muitos jornalistas, tenham ou não curso superior de Jornalismo, não saibam reconhecer temas e personagens solares dos assuntos pautados; (2) não dominem as jardinagens e as botânicas da língua portuguesa a ponto de escreverem um texto correto, do ponto de vista gramatical, e bonito do ponto de vista do estilo. Em resumo, nossa imprensa ficou feia naquilo que sabíamos fazer melhor (escrever) e ficou quase perfeita do ponto de vista tecnológico.
Na televisão dá-se algo semelhante. TV de alta definição para ver Ratinho e similares? Não seriam necessários tantos recursos, não!
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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras