A Crescer está nas bancas com uma chamada de capa sobre as ‘perigosas peruinhas’. O assunto tratado é a vaidade das meninas de 3 a 8 anos. É de doer.
Sempre fazendo publicidade de marcas, produtos e casas especializadas na embonecação de crianças, vez ou outra surge a opinião de um profissional. Não consegue, porque seria o cúmulo da picaretice encontrar algum pediatra, psicólogo ou ortopedista que concorde com o uso das sandalinhas e sapatinhos de saltinho! É tudo inho, a matéria é um docinho. As opiniões dos profissionais são colocadas de um jeito sequinho, só para dar um toquezinho nas mamães mais riquinhas, mais espertinhas, que podem comprar a revistinha e pensar em gastar mais um pouquinho, afinal, as baby-gatas merecem ser peruinhas sem culpa.
Logo após as opiniões dos profissionais, salta sempre, em palavras muito claras, a mesma conclusão, que atravessa o texto de cabo a rabo: o importante não é deixar de usar o salto, comer o corante, tomar banho de perfume; fundamental é dosar, usar com parcimônia e sobretudo seguir a orientação de pais e mães, que hipoteticamente sabem o que estão fazendo com suas filhas, tratadas no texto como propriedade particular.
Bem, crianças deveriam ser tratadas como patrimônio da humanidade, e não propriedade particular, mas isso é uma outra história. O que a criança consumidora de marcas caras e famosas usa, e se usa e abusa, embora mereça todo o respeito e deva ser tratada como patrimônio da humanidade como qualquer outra criança, é um problema menor. Simplesmente porque essa criança, é bem provável, terá acesso a um ótimo ortopedista quando crescer, assim como a um psicólogo para resolver a infância invadida por um comportamento egóico, que roubou parte importante de seu desenvolvimento e afetará o âmago de sua sexualidade, em menor ou maior grau.
A sexualidade, entendida como prazer, já está presente no bebê mamando, e não deve ser confundida com erotização e muito menos com egotização, versão ainda mais perversa e muito em voga na mídia desde a explosão da dança da garrafa e a partir da nova fase do mundo contemporâneo, a Era do Márquetim. Mas a salada que o texto oferece contraria essa premissa.
Sandice em cascata
A Crescer se supera nessa ‘matéria’ ao escolher apenas exemplos exagerados de crianças e mães que praticam o consumismo como fonte de prazer. As entrevistadas são mães de garotinhas de menos de 8 anos que têm coleções de 40 sandálias e bolsas, vão ao salão com freqüência maior do que a de uma adulta desocupada, fazem massagens, tomam banhos de pétalas e têm como primeira preocupação, e dilema matutino, a escolha da roupa.
Parece até piada, mas é assim que está lá.
Partindo-se de um princípio básico do jornalismo, a revista trabalha para o público assinante ou comprador na boca da banca, e não para o setor de márquetim angariar mais e mais patrocínios; então, é de espantar que a revista não tenha procurado qualquer exemplo mais comum no universo da classe média, o que seria a maioria do público comprador. Ainda assim, um mínimo de ética num país tão heterogêneo exigiria que outros exemplos fossem dados, como algum que representasse a maioria das cinderelinhas do Brasil, muito além de uma coleção de sapatinhos, ainda que de plástico escorregadio e perigoso para colunas e ossos frágeis.
Agora, a ignorância psicológica da matéria ultrapassa a grosseria sociológica ao colocar a vaidade como grau a ser escalado para uma eventual feminilidade maior, vendendo a absurda idéia de que, para ser mais feminina, a menina desde cedo deve usar artifícios, fazer força egóica para parecer e aparecer. E essa mancada que a revista comete se torna ainda mais absurda com o conselho barato e disparatado, típico dos anos 80: ‘Cuidado para que a criança não pareça um miniadulto’.
A questão não é parecer ou não miniadulto, a questão é a perda do direito de ser criança, a perda da formação lenta e gradual de uma auto-estima baseada em prazeres genuínos, não-compráveis. E isso teria tudo a ver com uma sexualidade bem-resolvida, para ricas e pobres. A sandice da mídia não é pouca e atua rapidamente em efeito-cascata, atingindo massa enorme de meninas.
Dói profundamente
O desenvolvimento da sexualidade feminina deveria ser desvinculado de vaidades exageradas porque sentir é sua fundamentação, e sentir é internalizar, mergulhar em si mesmo, afastar-se das futilidades. Até para adultos é assim, e mesmo adultos, quando muito voltados para fora, afastam-se de seus sentimentos, da sensação de seus corpos, do prazer real. Crianças empurradas para o consumismo, preocupadas com roupas e apetrechos, estão sendo alijadas de um prazer puro, que deveriam estar saboreando com toda a despreocupação e a ingenuidade inerentes à infância.
Agora, o que assusta e torna a matéria um pesadelo é a sujeição da imensa maioria de meninas pobres a esse público das marcas, produtos e casas especializadas em multiplicar por mil a vaidade natural da garota em fase lúdica. Antes a revista só atingisse seus leitores. Infelizmente, não é assim, e é temerário visualizar o futuro da garotinha que desce o morro rebolando em cima de sua sandália de plástico de salto, fazendo caras e bocas, achando o máximo a blusa reluzente e decotada que ganhou da filha da patroa, aquela menina linda que até parece artista de novela.
Daí em diante eu me calo porque dói profundamente, e se eu continuasse a escrever sobre esse assunto iria radicalizar, perder a noção, exigir das autoridades controle sobre revistas direcionadas a pais de crianças e adolescentes. Iria querer seriedade pelo menos nesse tipo de publicação, que deveria, necessariamente, ser pedagógica, didática e o menos comercial possível. Estritamente profissional.
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Jornalista