De Alberto Dines, no dia 4 de maio, neste Observatório: ‘Ficou evidente que a remoção integral do tal `entulho autoritário´, ao contrário do que possa parecer, foi uma jogada se não autoritária, pelo menos suspeita e com uma dose de irresponsabilidade’. Concordo com o autor. Mas o motivo deste artigo não é o fim da Lei de Imprensa, e sim, apontar que há um outro entulho autoritário também danoso à democracia, que a imprensa não tem discutido devidamente. Trata-se da propaganda eleitoral gratuita em rádios e televisões.
Alguém pode alegar que essa não é uma herança da ditadura, pois foi instituída pela Lei 4.109, promulgada no dia 27 de julho de 1962 pelo presidente do Senado, Adauto Lúcio Cardoso. A lei foi proposta pelo deputado federal pernambucano Oswaldo Lima Filho, antes de ser nomeado ministro da Agricultura, no último Ministério de Jango Goulart, e modificada pelo Código Eleitoral de 1965. No entanto, o que havia inspirado a instituição da propaganda eleitoral gratuita em rádios e TVs se manteve, com algumas limitações, até a grande derrocada da Arena nas eleições de 1974, ano em que o general Ernesto Geisel assumiu a presidência da República, no dia 15 de março, prometendo uma abertura política.
A derrota do partido do governo levou à chamada Lei Falcão (uma ‘homenagem’ ao então ministro da Justiça, Armando Falcão), que em 1976 alterou o Código Eleitoral e tornou irrisória, quando não ridícula, a participação dos candidatos no rádio e na televisão. Apesar dessa lei ter sido abrandada em 1982, seus efeitos permanecem até hoje, pois as que a sucederam vêm impedindo, de fato, o livre e exaustivo debate dos problemas brasileiros e das propostas dos candidatos para resolvê-los.
Como mudaram os jornais!
Desde 1950, com a Lei 1.164, as emissoras de rádio e televisão eram obrigadas a estabelecer, para a propaganda eleitoral, rigorosos critérios de rotatividade que atendessem a todos os partidos políticos, assim como fixar tabelas de preços iguais para todos eles. Só 12 anos depois os partidos puderam fazer propaganda gratuitamente, mas a nova lei não proibia a propaganda paga no rádio e na televisão. Os dois tipos coexistiram até 1974.
O Código Eleitoral de julho de 1965 veio com uma novidade: nos anos em que não havia eleições, as emissoras eram obrigadas a conceder aos partidos políticos uma hora por mês para que apresentassem seus programas. Mas a inovação durou menos de um ano, sendo eliminada em maio de 1966 pela Lei 4.961. De qualquer forma, as cassações e ameaças feitas contra membros da oposição a partir de 1964 inibiram os debates nos rádios e televisões, até a posse de Geisel, em 1974.
Vou me deter um pouco nos resultados das eleições de 1974, pois eles foram importantes para balizar o que ocorreu depois com a propaganda eleitoral gratuita, transformando-a até hoje num ‘entulho autoritário’.
Para isso, lanço mão de uma reportagem que publiquei no Jornal do Brasil em 5/9/1976, sob o título ‘Votos de 74 talvez não tenham dado eleitores ao MDB’. O texto se baseou em estudos divulgados naquele mês pela Revista Brasileira de Estudos Políticos, daUniversidade Federal de Minas Gerais.
(Abro parêntesis: o texto de 3.586 palavras (312 linhas e 22.369 caracteres), sem foto ou outra ilustração, ocupou menos de uma página do jornal de domingo, apesar de dividido em seis retrancas; hoje, quando papel de jornal parece não valer muito, o texto exigiria mais de três páginas, pois o editor não dispensaria quadros e infográficos, mas nem por isso o leitor ficaria mais bem informado. Como mudaram os jornais! Fecho o parêntesis.)
Os coronéis de Pernambuco
Em 1974, estavam em disputa para o Senado 22 cadeiras e o MDB ficou com 16 (ou 60% dos votos). O partido de oposição elegeu 44% dos deputados federais e a maioria em seis assembléias estaduais.
Os analistas das eleições de 1974 apontam, entre outros fatores para esse bom desempenho da oposição, a liberdade assegurada aos candidatos para desenvolverem sua campanha, aliada a um acentuado e generalizado desejo de mudança, ao aparecimento de um eleitorado jovem desejoso de participação e pouco sensível à argumentação dos candidatos da Arena. Ainda, às dificuldades econômicas enfrentadas por quase todos os eleitores e à atitude de arrogância mantida pela Arena.
O fator mais importante, no entanto, teria sido a influência da campanha pela televisão. Um chefe político do interior goiano chegou a classificar a televisão como sendo o novo ‘coronel’. Em Goiás, a Arena venceu em 59 dos 79 municípios que não recebiam imagem de TV e, dos 138 onde havia, o MDB ganhou em 92.
Descendentes diretos dos antigos capitães donatários e dos principais sesmeiros, os coronéis ainda tinham poder, segundo o professor de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Palhares Moreira Reis: ‘Coronelismo e voto de cabresto, como se sabe, são elementos integrantes do processo político pernambucano, a se realizarem tanto no ambiente rural, como no quadro urbano.’ Ele disse que em 1970, 33,59% dos eleitores votaram em branco e 7,39% anularam seus votos para o Senado, ao passo que em 1974 somente 6,3% votaram em branco e 4,51% anularam. Para Reis, o povo acreditou na sinceridade do processo eleitoral e, mais ainda, na promessa do governo de que acataria o resultado apontado nas urnas.
Liberdade prejudicou Arena
Na sua opinião, houve uso inteligente do rádio e TV na campanha. ‘Parece que, agora, os nossos políticos começaram a se convencer de que a audiência de televisão, mesmo de índice pequeno, é maior do que uma grande presença em comício.’ Com uma vantagem: ‘Os candidatos puderam falar dentro de casa aos eleitores indecisos, que, por isso mesmo, e com medo de comprometimento, não comparecem a comícios em praça pública.’
Para o Senado, a margem de votos brancos e nulos atingiu a pouco mais de 10%, dando a vitória a Marcos Freire, pelo MDB pernambucano. Para a Câmara, a Arena obteve cerca de 54% dos votos, contra 24% do MDB, somando os votos brancos e nulos mais de 21%. Para a Assembléia, a Arena obteve mais de 56% dos votos, somando os brancos e nulos 18%. ‘Em números redondos, os valores percentuais representam uma vitória exclusiva do candidato Marcos Freire e um aumento relativo de substância nas legendas do MDB, sendo mantida a superioridade da Arena.’ Em 28 municípios pernambucanos, a votação do MDB foi menor que 1% dos votos apurados. A Arena venceu com grande folga no Agreste e no Sertão. Na Bahia, controlada com mão de ferro pelo governador Antônio Carlos Magalhães, sua vitória foi generalizada. Para os militares no governo, era este um ‘estado bem comportado’.
A eleição paulista foi analisada pelo professor Dalmo Dallari, da USP. No estado, o MDB venceu para o Senado (4,63 milhões de votos), para a Câmara (3,41 milhões) e para a Assembléia (3,58 milhões). A Arena teve, pela ordem, 1,69 milhão, 2,03 milhões e 2,04 milhões. Segundo Dallari, os arenistas se mostraram completamente despreparados para o debate. ‘Nesse sentido, pode-se dizer que a liberdade assegurada aos candidatos foi prejudicial à Arena.’
Vocação ao nepotismo
O MDB, também surpreendido com a liberdade de palavra, e esperando um ambiente de muitas restrições, não conseguiu apresentar uma chapa completa nem formar diretórios em muitos municípios paulistas. O próprio eleitorado foi surpreendido, diz o professor Dalmo Dallari. ‘Realmente, entre os eleitores de vários níveis eram mais ou menos freqüentes as referências elogiosas ao governo por estar assegurando a liberdade de crítica. Mas esse reconhecimento não se transferia para a Arena em forma de apoio eleitoral, o que se explica facilmente, considerando que essa agremiação jamais apareceu como defensora da liberdade.’
Ele conclui que, dada ainda a inocorrência de adesão integral à legenda vencedora, em grande parte a votação foi contra a Arena, contra o que ela simbolizava em termos de opção política. ‘O quadro eleitoral brasileiro, com apenas duas agremiações concorrentes, forçou o eleitorado a se orientar num dualismo que tinha, de um lado, a promessa de permanência da situação estabelecida desde 1964 e, de outro lado, uma possibilidade de mudança.’
O professor Francisco Ferraz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Yale, EUA – registra a vitória do MDB em dois terços dos municípios do Estado. Para o Senado, obteve 53,6% dos votos e a Arena 34,8%. A oposição teve ainda 49,9% dos votos para a Câmara, contra 35,2% da Arena, e 50,4% dos votos para a Assembléia, contra 35,8% da Arena.
No Paraná, em 1974, o candidato ao Senado pelo MDB, Leite Chaves, desconhecido do eleitorado, obteve 1,09 milhão de votos, enquanto João Mansur, de longa atuação partidária na Arena, ficou com 703 mil. Para a Câmara, a legenda arenista teve 847 mil votos e a emedebista 818 mil. Para a Assembléia, foram 909 mil votos para a Arena e 798 mil para o MDB. O professor de Direito Administrativo da Universidade Federal do Paraná, Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, avalia que a Arena manteve-se enclausurada e com ‘excessiva vocação ao nepotismo como costume político-administrativo, facilitando a vida de correligionários e parentes na administração, e de tal maneira que os interesses pessoais não se conciliavam com os públicos nas diversas regiões’.
Reinterpretação da Lei Falcão
Dos 16 candidatos à Câmara apontados pelo MDB no Paraná, venceram 15, enquanto dos 32 indicados pela Arena venceram também 15. Para a Assembléia, foram eleitos 25 dos 51 candidatos do MDB e 29 dos 75 da Arena.
A análise das eleições de 1974 – a Arena elegeu 204 deputados federais e o MDB 160 – era feita também pelo governo, principalmente pelo ministro Golbery do Couto e Silva, da Casa Civil. E o governo se preparou para as eleições seguintes, de forma a impedir novo crescimento da oposição.
Já em agosto de 1974, foi sancionada a Lei nº 6.091, projeto do deputado Etelvino Lins, da Arena pernambucana, que proibiu a propaganda paga no rádio e na televisão e limitou-a aos jornais e revistas, permitindo apenas a divulgação do curriculum vitae do candidato, número do registro e partido. Em julho de 1976, foi aprovada a Lei Falcão (Lei nº 6.339), estendendo aquela regra para a propaganda eleitoral gratuita no rádio e televisão, podendo também mostrar a fotografia dos candidatos e anunciar o horário e local dos comícios. A Lei Falcão ajudou a Arena a recuperar, em 1978, as cadeiras na Câmara dos Deputados perdidas em 1974. O governo criara também a figura do ‘senador biônico’, ou seja, de cada dois senadores, um seria eleito por um colégio eleitoral, e não pelo voto popular, garantindo assim maioria no Senado. Em Minas, foi eleito Murilo Badaró, que ganhou o apelido de ‘Bionicão’.
Nas eleições de 1982, a Justiça Eleitoral reinterpretou a Lei Falcão, permitindo debates entre os candidatos e propaganda paga na televisão. Em 1988, a Constituição manteve o acesso gratuito dos partidos ao rádio e à televisão e não proibiu propaganda paga, mas a proibição foi reintroduzida pelas leis eleitorais criadas para regulamentar cada uma das eleições seguintes.
Plano Real, propaganda de FHC
Uma das leis mais polêmicas foi a de nº 8.713, que regulou as eleições de 1994.
A Justiça Eleitoral procurou tirar lições das eleições de 1989, sobretudo do que sucedeu ao principal personagem da Constituinte de 1987, o deputado Ulysses Guimarães. Ele era candidato do PMDB e, apesar de muito prestigiado, só tinha 4% das intenções de voto antes do início do programa eleitoral. Acreditava-se que, com o programa, sua candidatura alçaria vôo, pois tinha o maior tempo: 22 minutos. Mas, sem um bom marqueteiro, não conseguiu sair dos 4%. Seu programa entediava os eleitores, enquanto Fernando Collor, com 10 minutos diários, chamava a atenção com um efeito especial feito pelo computador: uma locomotiva que ‘trazia o desenvolvimento e o progresso’. Mesmo assim, a uma semana da eleição, foi ultrapassado por Lula, cuja campanha também soube tirar proveito do programa eleitoral até que, faltando três dias, veio o fatídico debate entre eles, precedido do programa de Collor mostrando no ar uma filha que o candidato petista teve fora do casamento.
O TSE tentou impedir, em 1994, que truques de TV voltassem a ser decisivo nas eleições.
Os contrários ao texto diziam que as proibições contidas na lei reduziam o potencial informativo dos programas. Partidos não poderiam usá-los para se contrapor às versões dos acontecimentos divulgadas diariamente pelas emissoras nos seus telejornais, impedindo inclusive a exibição de cenas externas. O artigo 67 previa punições severas para as emissoras que trabalhassem em prol de seus candidatos, o que não impediu que o fizessem. Não foram poucas as reportagens sobre o Plano Real que, de fato, eram propaganda da candidatura de Fernando Henrique Cardoso.
Voltando à Lei de 1962
Para as eleições de 1996, foi editada a Lei nº 9.100, de 29 de setembro de 1995, que permitiu a utilização de gravações externas, montagens e trucagens, a presença de platéia, convidados, atores e personalidades. As propagandas gratuitas puderam ser distribuídas ao longo da programação veiculada das 8 às 24h, inclusive sábados e domingos.
Analistas afirmam que as limitações impostas pela legislação ao Programa Eleitoral Gratuito diminuíram a audiência desse programa, ao longo dos anos. Isso reforça argumentos de donos de rádio e televisão contrários ao Programa Eleitoral Gratuito e a favor de propagandas pagas dos candidatos. Alegam que têm prejuízo ao serem obrigados a ceder espaço em horário nobre, apesar de a lei autorizá-los a abater custos e lucros cessantes no Imposto de Renda. Dizem que o horário eleitoral espanta anunciantes.
Pode não ser verdade. As emissoras recebem do governo 100% do preço da tabela, enquanto dão a anunciantes privados generosos descontos. Talvez como cortina de fumaça, em 1994, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) distribuiu às associadas nota de protesto para ser lida antes do início do horário eleitoral.
Evidentemente, não tenho uma proposta para resolver essa questão. Mas acho que os interessados em aperfeiçoar a democracia brasileira podem começar por conhecer a Lei de 1962, elaborada antes do golpe de 1964. Encontrei-a na internet, aqui.
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Jornalista, Belo Horizonte, MG