Três respeitados acadêmicos, os norte-americanos Barbie Zelizer e Clarence Anderson, e o argentino Pablo J. Boczkowski lançam agora em dezembro o livro The Journalism Manifesto, somando-se a outros autores como o jornalista inglês nascido em Zâmbia (Africa), Alan Rusbridger (autor de The Remaking of Journalism), na defesa de uma mudança profunda nos procedimentos, regras e valores do jornalismo em tempos de internet e da digitalização.
Os professores e o ex-editor chefe do britânico The Guardian, todos mundialmente conhecidos por sua defesa do jornalismo, engrossam as vozes que defendem uma revisão completa da cultura profissional e chegam a falar numa reinvenção do jornalismo. Não se trata apenas de adaptar as práticas atuais às novas ferramentas digitais na edição, publicação e disseminação de notícias.
Zelizer e Boczkowski entendem que é preciso repensar a profissão como um todo e não apenas ajustar partes da rotina jornalística aos novos tempos digitais. A ideia de um verdadeiro tratamento de choque na profissão ainda enfrenta muitas resistências nas redações e entre os autônomos porque mexe com duas grandes incógnitas: o comportamento do público e o desempenho financeiro.
O movimento que inspirou a publicação do The Journalism Manifesto parte do princípio de que a era digital criou uma nova realidade para a informação ao transformá-la em algo fluido, complexo, interativo e onipresente em nossas vidas. É o oposto da informação como um produto comercializável, associado a direitos de propriedade, distribuído verticalmente e com limitada interatividade.
A grande maioria dos profissionais do jornalismo ainda vivem a cultura da adaptação de velhas rotinas, normas e valores às ferramentas digitais como internet e computação. Mas problemas como a crise do modelo de negócios, o caos das redes sociais e a expansão das plataformas digitais como Facebook, Twitter, Youtube e WhatsApp tornam irreversível uma reinvenção das práticas jornalísticas.
O tamanho do desafio
O desafio está no fato de que o desenvolvimento de novos paradigmas não se limita a questões operacionais na produção de notícias. É todo um amplo e intrincado conjunto de medidas que serão alteradas com o avanço da digitalização no universo jornalístico. A maioria dos temas mencionados a seguir já foi tratada individualmente por muitos autores, inclusive eu. Ao agrupar os temas mais importantes num conjunto só, fica mais claro o tamanho e a complexidade do desafio que está diante de nós:
a) A fluidez da notícia – a notícia torna-se um processo contínuo permanentemente atualizável digitalmente, logo tornam-se necessárias novas regras para sua utilização;
b) A culturalização da notícia – a informação assume características de um bem cultural na medida em que o seu significado se torna mais relevante do que o dado ou fato concreto;
c) A relativização do conceito de autoria – A recombinação ou remixagem digital de notícias impõe o desenvolvimento de novos conceitos de autoria e propriedade intelectual;
d) A informação como bem público não comoditizável – O caráter de bem público muda a sustentabilidade econômica do jornalismo, que passa a depender basicamente do público por meio de assinaturas, doações e ajuda na forma de serviços ou mão de obra; a publicidade paga perde espaços porque a notícia já não tem mais o mesmo valor comercial de antes;
e) A nova economia política da informação e do jornalismo – a inserção do jornalismo no contexto político e econômico desloca-se gradualmente da órbita governamental e corporativa para o engajamento com o público;
f) Curadoria e fact checking na rotina jornalística – O fact checking terá que ser incorporado à rotina de todos os profissionais e amadores para que o jornalismo se descole da desinformação;
g) O jornalista como information coach – como as pessoas têm acesso à publicação de notícias na internet, o jornalismo torna-se peça obrigatória na tutoria de blogueiros, produtores autônomos de notícias e influenciadores digitais;
h) Datificação do jornalismo – o jornalismo de dados ganha espaço como ponto de partida para reportagens investigativas;
i) Robotização do jornalismo – o aumento do uso de algoritmos para a seleção, edição e distribuição de noticias cria uma área nova no jornalismo, com inevitáveis dilemas éticos e tecnológicos;
j) A plataformização do jornalismo digital – a imprensa (conjunto de empresas especializadas na produção de notícias jornalísticas) perde para plataformas digitais (Facebook, Google, Twitter, Youtube e outras) o monopólio da intermediação entre o público e a notícia, abrindo espaço para um ambiente informativo caótico;
k) O glocal (neologismo de global+local) como estratégia editorial no jornalismo – desaparece o limite geográfico entre notícias locais, nacionais e mundiais;
l) Desinstitucionalização, desprofissionalização e revisão da estrutura de ensino do jornalismo em universidades – o jornalismo passa a ser praticado por um número crescente de autônomos sem carteira assinada com instituições da imprensa. A graduação universitária já não é mais condição indispensável para o exercício da profissão, o que impõe a necessidade de uma revisão profunda nos currículos acadêmicos dos cursos de jornalismo;
m) Narrativa jornalística não linear e multimídia – uma consequência da produção multimídia de notícias;
n) A uberização no exercício do jornalismo – nova realidade no mercado de trabalho, com a substituição dos contratos (carteira assinada) por trabalho temporário como regra.
Tarefa coletiva
Só por este sumário de 14 temas já dá para perceber que a reinvenção do jornalismo não é uma tarefa fácil e nem rápida. Obviamente também não resultará exclusivamente de esforços isolados. Terá que ser uma iniciativa do maior número possível de profissionais e pesquisadores acadêmicos porque o jornalismo digital se tornou muito mais diversificado do que o praticado na era analógica. A variedade de ambientes profissionais, tecnologias, contextos sociais e de nichos informativos é talvez uma das características mais inovadoras do jornalismo na era digital.
Barbie Zelizer, Clarence Anderson e Pablo Boczkowski, a exemplo de Alan Rusbridge, ousam propor um debate que vai muito além da capacidade de todos estes autores apresentarem respostas definitivas, se é que elas existem. Mas não se pode tirar deles o mérito de provocar a consciência profissional para a necessidade e urgência de uma nova forma de pensar e praticar o jornalismo.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.