Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Manipulação e suavização do noticiário

Desde que o governo interino assumiu a administração nacional, há grande esmero por lado dos principais grupos de comunicação na “coloração” dos fatos, mesmo que tal entonação não condiz com a mudança da realidade. Esse comportamento se observa em estágios mais sutis – como a substituição de palavras negativas por positivas –, e outros exemplos escancarados de deturpação dos acontecimentos – como manchetes desequilibras para ressaltar aspectos menos relevantes e ocultar os mais importantes –, sendo que muitos casos já viram piada nas redes sociais.

No artigo “A manipulação de contextos na montagem de notícias”, Carlos Castilho faz uma excelente análise de como as Organizações Globo, por meio do JN, usam com mestria e perspicácia a manipulação na edição do conteúdo. Castilho lembra que “um editor ou jornalista pode criar um contexto sem alterar dados, fatos ou eventos”. Para ilustrar sua citação, usa uma comparação: “Um dado não existe fora de um contexto. Ele pode ser exato, mas manipulado conforme a imagem do copo meio cheio ou meio vazio. O copo é o mesmo, o volume de água idem, mas o profissional pode descrever o fato de maneiras diferentes o que vai induzir o leitor, telespectador ou internauta a desenvolver percepções e opiniões condicionadas pela descrição jornalística.”

Manchete no dia após Cerveró revelar propina ao filho do FHC

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A imagem acima reproduzida no Facebook pelo escritor Fernando Morais, ganhou repercussão e virou piada nos espaços virtuais: “Não consigo entender a perseguição do jornal o globo ao fernando henrique cardoso. Basta aparecer qualquer denúncia sobre escândalos no governo do ex-presidente que o jornalão escancara, dá com o maior destaque. Olha essa capa de hoje. Só um cego não vê isso”, ironizou o escritor. Para ler “só com lupa”, finalizou.

Título da Folha omitiu Temer da chamada

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A capacidade de uma leitura crítica

Destaque da Folha de S.Paulo também obteve a atenção dos internautas pela deliberada tentativa de poupar o nome do presidente interino Michel Temer no contexto da crise. Neste exemplo, o público online resolveu sinalizar com seta vermelha onde deveria constar “de Temer” na edição do título.

Fatos como esses e outros mais sutis, e tantos mais explícitos de direcionamento do enfoque no noticiário, são corriqueiros no dia-a-dia. A diferença, porém, é que os dois casos receberam uma contrapropaganda graças à posição ativa dos usuários das redes sociais, enquanto a maioria do conteúdo produzido pelos tradicionais meios de comunicação ainda é consumido como última verdade sem nenhuma objeção por parte do público.

Para poder reagir diante das informações que nos chegam, portanto, é preciso ter uma base cultural e estar atento aos objetivos subliminares embutidos nas mensagens. E só há resistência, tanto no jornalismo como na propaganda, quando as pessoas possuírem a capacidade de fazer uma leitura crítica e comparem as informações que consomem, assim como já acontece em alguns momentos nas plataformas virtuais.

Quantidade não basta

Conhecer as funções da mídia significa poder, o qual oferece a oportunidade de ser usado para interesses gerais e específicos. Já desde os anos 30 do século passado, uma corrente de estudos da comunicação – conhecida como funcionalista – pesquisou os efeitos e as funções que os meios de comunicação de massa desempenhavam na sociedade norte-americana. Segundo Paul Lazarsfeld e Robert Merton, a mídia atribui status de importância às pessoas e às causas públicas que ela exibe, além de atuar para estabelecer um equilíbrio entre as tensões individuais e coletivas da sociedade, a fim de que as normais sejam executadas conforme manda o sistema oficial.

Por outro lado, os teóricos descobriam também o que nomearam de disfunção narcotizante. Ela ocorre com a exposição à avalancha de informações, criando um efeito de apatia e inércia nas pessoas, em vez de estimulá-las à ação. Isso acontece porque o cidadão ocupa grande parte do seu tempo lendo e vendo todo tipo de notícias, logo sobra pouco tempo para agir. Ademais, a pesquisa revela que o vasto fluxo de comunicação suscita apenas preocupações superficiais com os problemas, em consequência deixa o público em posição passiva.

O fato de vivermos na “era da informação” por si não basta para estamos bem-informados. Pelo contrário, o efeito que esse excesso de informações causa sobre as “massas”, tornando-as menos críticas devido à grande quantidade de dados com o qual têm contato. A tecnologia funciona como instrumento da comunicação, que gera facilidade de distribuição da mensagem, saturando a todos que não conseguem filtrar e criticar estas informações muito por conta de sua superficialidade. A tarefa se torna mais difícil ainda, atualmente, pois a comunicação está fragmentada demais, como já observou o sociólogo Zygmunt Bauman. “As informações mais bem-sucedidas, que têm mais probabilidade de serem consumidas, são apenas pedaços da realidade.”

Por isso “é sempre preferível difundir um quadro geral da totalidade dos itens de informação disponíveis, em vez de eliminar algumas cuja ausência então arriscaria ser notado”, reflete Luiz Lima Costa, no livro Teoria da Cultura de Massa. Para o autor, a estratégia é cômoda para a mídia, visto que o efeito principal não está na quantidade de informações dadas, mas sim na ênfase que cada tópico recebe no contexto geral. Em outros termos, o interesse é mais sensível à “coloração” e ao empacotamento que se dá às mensagens do que à quantidade de assuntos publicados numa edição. A presença ou não de certo elementos no tratamento da informação, acaba gerando um efeito no público a logo prazo, cumulativo e convergente, conhecido como cultura midiática.

Manipulação?

Embora nem sempre a manipulação seja proposital, porque a mídia se abastece com dados de fontes externas – como governos e entidades privadas – e eles têm seu interesse nos fatos, e o exercem quando liberam as versões que lhes forem mais favoráveis para a publicação. Mas, de acordo com Patrick Charaudeau, a interferência principal ocorre no ambiente interno – redação – na produção do conteúdo. “É neste lugar em que se decide o que deve aparecer mais visível ou menos, além da forma como será dada a notícia. Sendo que o sentido só é perceptível através de formas, havendo, portanto, uma solidariedade recíproca entre forma e sentido.”

Por isso, com base nos exemplos no início do texto, pode-se concluir que os destaques apresentados e suas formas são resultados de decisões internas, na hora da edição do conteúdo, portanto, não havendo motivos para falar em manipulação externa ou carência de dados sobre os temas, tratando-se apenas de uma questão de escolha editorial dos veículos na ênfase dada para determinados aspectos e a exclusão de outros nas manchetes.

Também se sabe, por meio de Charaudeau, que na comunicação o efeito de um acontecimento nunca é dado antecipadamente, mas construído pela ação da linguagem em situações de troca social. Em outras palavras, o processo consiste em transformar um “mundo” sem significado em um “mundo” com significado.

No momento da transformação do “mundo” em notícias, como é o caso dos tópicos em questão, optou-se em ressaltar certos nomes e palavras, cortar outros e fazer com que parte das informações só fosse perceptível com uma lupa à mão, conforme satirizou Fernando Morais. Outra estratégia também adoptada pela mídia, quando quer acelerar a evolução no debate das questões públicas, é definir em alternativas simples os temas – preto no branco – para possibilitar a ação pública organizada. Ou seja, roteirizar as questões entre certo ou errado, bem ou mal, assim polarizando até os assuntos mais complexos, aliás, algo muito conhecido na nossa imprensa.

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Elstor Hanzen é jornalista