‘O caso do marido asfixiado e escondido numa arca frigorífica’, copyright Jornal de Notícias, 16/5/04
‘Terça-feira, 11 de Maio. O leitor que, nesse dia, se sentou a ler o seu jornal talvez tenha ficado chocado com o principal título da primeira página: ‘Asfixiou o marido e congelou cádaver’. Em subtítulo, um esclarecimento acerca das circunstâncias do crime: ‘Mulher e três filhos viveram meio ano com o corpo na arca frigorífica’. Um caso escabroso e insólito que preenche quase todos os critérios para ser notícia e notícia destacada. E o JN, como seria de esperar, destacou o assunto: principal título de primeira página e desenvolvimento na secção de ‘Polícia’, a toda a largura da página, texto com fundo negro, ilustrado por uma foto do casebre em que o corpo foi encontrado. Alguns leitores, de círculos que me são próximos, comentaram o tratamento do caso no JN. De um modo geral, manifestando alguma incomodidade com o destaque dado à matéria.
Pergunta-se: andou bem o jornal ao conferir tal destaque? Seria o assunto merecedor de manchete? Não haveria matérias mais relevantes, nesse dia?
Quis ouvir sobre isto a opinião dos jornalistas que assinam a peça, bem como a dos responsáveis do jornal. Coloquei o assunto a debate, num sítio que animo na Internet, o weblog ‘Jornalismo e Comunicação’ (www.webjornal.blogspot. com) e os comentários não se fizeram esperar, com opiniões bastante divididas entre os que não tiveram dúvidas em classificar a opção do JN de ‘sensacionalista’ e aqueles que acharam normal que um órgão de informação generalista como o JN dê relevo a este género de casos, quando a sua importância o justifica.
O subdirector do jornal, David Pontes, reconhece não ser ‘comum o JN fazer manchetes com este tipo de matérias’, mas entende que a notícia ‘justificava plenamente a chamada à primeira página’ e, nesta, o lugar mais destacado, ‘ponderadas as diferentes notícias que aí figuram’. Não seria por se tratar de um crime que o assunto haveria de ser secundarizado. ‘Um crime, como este, cometido, ao que tudo indica, no interior de uma família e com todos os pormenores macabros que seguiram ao assassínio, fazem com que seja uma situação excepcional e daí o destaque que lhe é dado’.
No mesmo dia, o JN publicou uma extensa entrevista exclusiva com o treinador da selecção portuguesa de futebol, Luís Felipe Scolari, a qual se estende pelas quatro primeiras páginas úteis do jornal. Esta matéria é tratada igualmente com destaque na primeira página. Não teria sido difícil encontrar uma solução gráfica mais equilibrada, que não deixasse de conferir a importância devida ao ‘caso do marido morto e congelado’. Mas reconheço que se trata de uma questão de gosto pessoal. Analisando a trajectória das primeiras páginas dos últimos tempos, há que reconhecer que o Jornal não tem abusado de um registo mais popular, assente na enfatização das chamadas ‘histórias de interesse humano’.
Já me parece bem mais discutível e problemático um ou outro aspecto do tratamento da notícia. Várias observações poderão fazer-se. A principal reside, no entanto, na acusação taxativa que o JN fez à mulher da vítima. O texto da notícia está construído de molde a não nos deixar cientes dos factos. Logo no início, afirma, sem margem para dúvidas: ‘Matou o marido, pôs o cadáver numa arca frigorífica e continuou a viver normalmente com os três filhos, numa vivenda de Carvalhoso, em Arcos de Valdevez, durante seis meses’. No final da peça, porém, a certeza inicial evapora-se: ‘Segundo apurou o JN, a mulher teria admitido os factos’. Em que ficamos? Se nem sequer se está seguro de que a própria confessou, nem um tribunal ainda deu como provado, como pode o jornal deliberar por si mesmo, ao afiançar que ela ‘matou’, envolvendo nesse acto igualmente uma outra pessoa? E repare-se que isto é dito não apenas no interior, mas na própria manchete. De novo, David Pontes: ‘O texto podia – e devia – ser mais prudente e rigoroso. O título da primeira página acaba por reflectir, de alguma forma, este problema. ‘Marido asfixiado e congelado na arca’, poderia ser uma formulação mais acertada…’. O provedor não pode estar mais de acordo.
Mas podemos ir mais longe na análise do tratamento do caso: em rigor, nem sequer os factos aduzidos na reportagem nos permitem, a nós, leitores, aceitar sem reservas a interpretação de que a família conviveu, durante seis meses, na casa em que estaria a arca frigorífica com o cadáver. Aquilo que parece seguro é que o marido desapareceu em Junho de 2001 e que passados seis meses a mulher mudou de casa. Falta provar que, nesse período, o cadáver já se encontrava no local em que foi encontrado. É provável ou possível que tal tenha sucedido, mas a peça publicada não fornece dados que autorizem a conclusão. Puxar por este dado como se se tratasse de uma evidência é puxar por um ingrediente que empola de forma sensacionalista a peça.
Justificará isto que se catalogue o JN na categoria dos jornais sensacionalistas? Não é legítimo nem sério fazê-lo a partir de uma única matéria. Mas este é um ponto que merece mais reflexão, pelo que continuaremos em próxima oportunidade a tratar o assunto.
A Comissão de Queixas sobre a Imprensa, do Reino Unido, vai ter um novo código de conduta a partir de 1 de Junho. O documento, que resulta da revisão do actual, nascido em 1991, foi discutido com os parceiros do sector e passa a condenar, nomeadamente, o pagamento de entrevistas a autores de crimes e a intercepção de comunicações electrónicas (o texto pode consultar-se em http://www.pcc.org.uk/press/detail.asp?id=140)
Jorge Mota da Silva dá conta da sua estranheza ao provedor, acerca dos critérios de classificação de filmes em exibição. Segundo ele, há no JN, com alguma frequência, casos em que o mesmo filme é considerado ‘excelente’ por um avaliador e ‘mau’ por outro. Em quem confiar? É uma matéria de opinião em que o provedor não interfere. Em si mesmo, o caso mostraria apenas que os gostos e preferências podem ser muito diversos. Mas se, sobre os mesmos casos, as valorações fossem, por hipótese, sistematicamente contraditórias – o que não parece o caso – perderia razão de ser a própria rubrica de classificação.
A Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social acaba de aprovar uma ‘Plataforma comum da ética para os conteúdos informativos’. Trata-se de uma matéria em que a AIND-Associação Portuguesa de Imprensa vem a trabalhar há algum tempo e que, a avançar, sig-nificará um passo relevante na auto-regulação dos media, envolvendo a generalidade dos jornais e revistas, rádios e televisões.
O documento aprovado prevê a institucionalização da figura do Provedor da Comunicação, assim como a criação de uma Comissão Nacional (ETICOM) presidida por um magistrado e constituída por quatro representantes empresariais, quatro representantes de jornalistas, quatro representantes do consumidor, um representante do CENJOR e três membros cooptados pelos membros da ETICOM, sendo dois entre docentes universitários ligados ao sector da Comunicação Social e um entre as personalidades de reconhecido mérito e relevo no sector.’