Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mário Magalhães

‘A Folha considerou a novidade tão importante que a elegeu para a primeira página de anteontem: ‘Última inspeção do Airbus da TAM durou 15 minutos’. A reportagem trouxe o testemunho do mecânico que vistoriou o avião em Porto Alegre antes da decolagem para São Paulo no dia 17. O jornal reconheceu que o tempo despendido no exame da aeronave obedeceu aos padrões.

Optou pela exposição acentuada de informação sem relevância e não por um dos fatos mais notáveis da véspera: o chefe do Centro Nacional de Investigação e Prevenção de Acidentes contou que o órgão prognosticara em dezembro um desastre em Congonhas.

‘Não conseguimos evitar um acidente que previmos’, lamentou o brigadeiro Jorge Kersul. Seu depoimento não ganhou título na capa nem em Cotidiano.

Identificar o que merece destaque no noticiário é desafio permanente do jornalismo. Mais ainda em uma tragédia aeronáutica como a de 12 dias atrás, a maior da história do país, em que morreram duas centenas de pessoas.

A seleção dos acontecimentos dignos de atenção não tem sido a principal dificuldade da Folha. Como em episódios semelhantes, a escassez de conhecimentos técnicos produz erros que se amplificam em virtude da ansiedade em esclarecer as causas do acidente antes que os dados permitam.

O jornal bancou, sem comprovação, que o Airbus-A320 acelerou no segundo terço da pista principal de Congonhas. Tratou como mecânicas possíveis falhas eletrônicas do avião. Há outros exemplos.

Os tropeços sobre aeronáutica reeditam coberturas passadas, mas há diferença, a politização do infortúnio por governistas e oposicionistas.

Os primeiros rejeitam que a pista sem ranhuras que escoam a água da chuva tenha contribuído para o desastre. Os segundos divergem. O aeroporto é administrado pela Infraero, empresa pública.

Ao jornalismo cabe ser rigoroso na apuração dos fatos, exercendo com vigor sua função de fiscalizar o poder -não só o público, mas também o privado, no caso a TAM.

A Folha colecionou momentos de leniência: divulgou sem espírito crítico o pacote da Agência Nacional de Aviação Civil para diminuir o tráfego em Congonhas; idem em relação à viagem de oportunidade de deputados aos EUA, onde estavam as caixas-pretas do Airbus; e não publicou as fotos de autoridades, inclusive o presidente da República, rindo e gargalhando sem pudor em cerimônia oito dias após o acidente.

No sentido oposto, o jornal errou em imprimir fotografia de Denise Abreu fumando charuto meses antes da tragédia. Deu a impressão de que a diretora da Anac tripudiava da dor alheia. O leitor não é obrigado a procurar as letras minúsculas que datam imagens.

Também pareceu imprópria a reportagem da sexta ‘Vôos de Lula são mais seguros do que os comuns’. Desconheço país da dimensão do Brasil em que o governante voe com menos ou igual segurança que os passageiros regulares.

Gargalhadas sem pudor

No fundamental, no entanto, a Folha acertou. A politização se impôs com o sumiço de Lula, mais preocupado em não associar sua gestão à tragédia e ao caos nos aeroportos do que em confortar as famílias das vítimas e prestar contas ao país. Fosse nos EUA ou na Europa a demora de 72 horas para se manifestar, as críticas seriam mais ruidosas.

Quando o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia e um auxiliar fizeram gestos obscenos, eles haviam acabado de receber pelo ‘Jornal Nacional’ a informação de que a TAM admitia a inoperância de um reverso (equipamento que compõe o sistema de freios).

Defenderam sua atitude como reação à mídia que ‘culpava’ a pista ‘federal’ de Congonhas. Mas foi por um meio de comunicação que eles souberam da notícia do seu agrado.

Não foi o jornalismo que abusou ao relatar a condecoração pela Aeronáutica do presidente da Anac, Milton Zuanazzi, três dias depois das mortes. Foi o governo que zombou com sua insensibilidade sórdida.

O governo assumiu sua inépcia com a demissão do ministro Waldir Pires e a nomeação para a Defesa do presidenciável Nelson Jobim -mudança antecipada pela Folha.

Uma lição da crise: o jornalismo fraquejou ao não investigar com determinação as companhias aéreas nos últimos dez meses, desde o desastre com o avião da Gol. Em vez de investir na apuração sobre atendimento aos usuários e a manutenção de aeronaves, preferiu-se alardear os lucros fabulosos da TAM e da Gol.

Outra lição: em meio a interesses inconfessos, o interesse público exige olhar atento e simultâneo para governo e concessionárias. A escandalosa sujeição do Estado aos lobbies das empresas foi decisiva para a instauração do caos.’