Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Meia dúzia de perguntas impertinentes

Notei com perplexidade que O Globo omite deliberadamente a sigla PCC de qualquer matéria sobre o assunto. Em mais de 28 páginas sobre o tema, a sigla PCC apareceu apenas duas vezes, mencionadas por uma entrevistada. A decisão em omiti-la foi tal que, além de repórteres, editorialistas e colunistas, até leitores, pasmem, tiveram seus textos editados com esta, digamos, censura. A Folha de S. Paulo foi a outro extremo: em três edições, a sigla PCC aparece 77 vezes no domingo 14/5, 109 vezes na segunda-feira 15 e 119 vezes na terça-feira 16/5. Não houve qualquer economia.

Perguntas impertinentes: seria o leitor do Rio (e será somente do Rio?) diferente dos demais brasileiros? Teria ele a impressão construída erroneamente de que somente aqui em São Paulo há bandidos ou facções criminosas? Estará o diário carioca apenas reproduzindo pensamento do ex-governador Alckmin, que em seguidas oportunidades afirmou que em São Paulo não há PCC ou qualquer forma de crime organizado, somente um governo que trabalha por você em todos os minutos? Editar todos os textos, inclusive dos leitores, com qualquer objetivo que seja (até o de não glamourizar o PCC), está previsto no Manual da Redação criado pelo Luiz Garcia?

Interesse em iludir

Federalizar a crise – ser ou não ser imparcial, eis a questão. Se o uso da sigla teve tratamento diferenciado, a decisão editorial de jogar a crise no colo do governo federal foi unânime, como também houve concordância em excluir o ex-governador Alckmin do centro do debate, apesar de todos, hipocritamente, afirmarem que não se deveria politizar o assunto. Resultado: em mais de 124 páginas analisadas, quando se tratou da questão política (e não apenas policial), colar a crise ao governo federal e, em especial, ao presidente Lula, bem como blindar o ex-governador Alckmin, foi o esporte favorito dos jornais. Não falemos dos detalhes, mas apenas em manchetes. Ah!, as manchetes, os editoriais, as colunas… pasmem, inclusive as sociais.

Há exemplos eloqüentes. Veja os títulos das reportagens da Folha: ‘Lula reduziu gastos com segurança pública’; ‘União avisou de ataque a atos públicos’; ‘Alckmin culpa União por insegurança’; do Estado de S.Paulo: ‘Déficit de vaga em prisão cresce com Lula’; ‘Na Câmara, ataque a Lula’. Não se pode deixar de ler colunistas importantes, como Merval Pereira , entre muitos, e editoriais de O Globo. São expressivos e representativos de um modo de fazer jornalismo (‘Todos culpados’, ‘Crise de todos’ são os títulos, ambos na terça-feira 16), aparentemente imparcial, mas já denotando o desejo de federalizar o assunto. Em quatro longas colunas, quem está na berlinda é o governo federal, Lula e até o PT. De outro lado, como responsáveis nos estados (existem?) são apontados apenas os estados, e, pasmem de novo, para Merval Pereira, quase desaparece o PSDB, que governa São Paulo há 12 anos, ou Alckmin, que negou existir o PCC desde 2001, tendo inclusive mandado arquivar processo sobre sua existência.

Mais perguntas impertinentes: deve um colunista (e editorialista) titular seu texto como ‘Todos culpados’ e não ser, no mínimo, salomônico, destinando o mesmo espaço ao que chama de ‘todos’? Deve ser aceito que um aspecto negativo tenha sujeito determinado – Lula – e num positivo, o sujeito seja difuso – a União? Ou, quando se toque na responsabilidade histórica (pelo menos, cinco anos), o sujeito Alckmin apareça transferindo o problema? Não deveria, no mínimo, ser explicitado que o ex-governador, ao negar a existência do PCC, por si só, já demonstrava interesse em iludir (como eu fui iludido) a opinião pública? Por que não levantar nos arquivos de áudio/vídeo as entrevistas gravadas e filmadas sobre o tema?

Teses e mais teses

Quer dizer que a mídia não é o quarto poder ? Não é formadora de opinião? Manipula as informações com tendenciosidade insofismável e depois, candidamente, vai a esta mesma opinião publica saber o que ela pensa sobre os responsáveis? Vide Folha de 17/5: ‘Paulistano culpa Justiça, Lula e Alckmin em pesquisa Datafolha’.

Muito mais haveria para falar, como a diferença gritante entre conteúdo e manchete em ‘Comitiva foi de avião negociar com o PCC’ (Folha), que tem pouco significado em comparação a ‘Advogada usou avião da PM para ver Marcola’ (Estadão), esta, sim, abordando com exatidão a gravidade do fato – não a viagem de avião, mas o uso de avião do governo.

Daria não apenas uma, mas teses e mais teses de doutorado. Como professor universitário, já posso dizer aos alunos: se quiserem conhecer o verdadeiro papel da imprensa e como agem os jornalistas em relação aos fatos importantes, não precisam ler o chato e repetitivo A manipulação do público – Política e poder econômico no uso da mídia (Futura, São Paulo, 2003), de Edward S. Herman e Noam Chomsky. Leiam os principais jornais do pais e vão entender tudo.

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Professor universitário, Santos, SP