Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Meia hora, meia realidade, meio jornalismo

Conta-se que, quando Orson Welles chegava a um país que desconhecia, comprava os principais jornais e ia direto para o noticiário policial. Dizia que assim entenderia melhor onde estava pisando. Se Orson Welles desembarcasse no Rio de Janeiro e comprasse o tabloide Meia Hora, não se sabe o que compreenderia dos títulos que mesclam informação, humor e uma dose suculenta de preconceito social, mas certamente recolheria um bom material para filmes de ficção.

O diário da empresa jornalística Ejesa, vinculada ao grupo editorial português Ongoing, vende 118 mil exemplares, em época de queda vertiginosa de circulação de impressos em todo o mundo. A tiragem é quatro vezes superior ao que foi até recentemente o principal jornal do grupo, O Dia. No início dos anos 1970, quando pertencia ao então governador do Estado da Guanabara, Chagas Freitas, O Dia ostentava a posição de diário de maior circulação do País, com tiragem de 300 mil exemplares.

Para desvendar o processo de edição do Meia Hora, o cineasta Angelo Defanti entrevistou a equipe de produção, os idealizadores, a filha do antigo proprietário e dois pesquisadores de Comunicação, os professores Muniz Sodré e Sylvia Moretzsohn. O resultado é o documentário Meia hora e as manchetes que viram manchete, de 78 minutos, que seleciona as principais capas, com os títulos mais polêmicos e suscita o debate sobre os jornais populares e seus truques para conquistar o leitor.

Os depoimentos da dupla de editores Humberto Tziolas e Henrique de Freitas – ambos jornalistas com origem de classe média e formados pela Universidade Federal Fluminense – dão a entender uma certa naturalidade na escolha das manchetes espalhafatosas, como se a sátira estivesse contida no mundo cão retratado pelo jornal. Assim, a morte de um ladrão, traficante ou estuprador ganharia contornos de alívio para a sociedade. Exaltam-se indiretamente os atos de extermínio no combate ao crime, mas apenas nos casos restritos a comunidades pobres. Em 2008, a declaração do comandante de batalhão de que a PM seria “o melhor inseticida social” inspirou a seguinte manchete: “Bopecida, O Inseticida da Polícia – Terrível contra os marginais”. Ao lado o desenho de um frasco com a sigla SBPM. Era como se a Polícia Militar assumisse o papel de dedetizar as favelas e livrá-las de vermes e insetos. Nenhuma palavra de questionamento à ação policial na execução sumária de suspeitos. Parecem ressuscitar a famosa frase dos tempos do Esquadrão da Morte, segundo a qual “bandido bom é bandido morto”.

Por outro lado, há que se reconhecer que este espírito armado não se restringe à ação policial, mas está presente no imaginário social em muitas comunidades. A ausência do Estado dá margem à presença das milícias e dos “vingadores”, que já elegeram prefeitos na Baixada Fluminense, deputados e vereadores na Zona Oeste.

O chamado crime do colarinho branco, os casos de corrupção de políticos e empresários, estes não merecem espaço no jornal popular. É como se existissem dois cenários do crime organizado, mas o Meia Hora só falasse do cotidiano próximo ao leitor. Implicitamente, fica a ideia de que a corrupção em grandes proporções faz parte de um universo inalcançável e, portanto, pouco relevante. O duplo sentido, o trocadilho e o deboche são aplicáveis apenas aos pobres. Mas os editores também estabelecem limites na hora de brincar com a morte. No dia seguinte a uma chacina na Baixada, a capa do jornal manda um recado: “Desculpe, leitor, hoje não tem piada”.

Um mérito do tabloide é estimular a leitura de publicações jornalísticas em um segmento que não possui o hábito de ler. Daí fotos enormes e manchetes gigantescas, sempre com texto curto, direto e vocabulário restrito. O jornal tem o cuidado de editar um pequeno glossário, com as palavras que considera difíceis para o leitor. O preço do exemplar – R$ 1,00 –, estampado em destaque no alto da capa, também exerce atração especial. Baseado no quadripé crime, celebridade, prestação de serviços e futebol, o Meia Hora se orgulha de não poupar nenhum clube. Tira sarro de todos os torcedores na derrota, embora os editores reconheçam que o Flamengo, pelo tamanho da torcida, mereça destaque maior. Assim, quando o atacante Adriano não foi convocado para a Copa do Mundo de 2010, o jornal fez a montagem de uma foto do jogador fazendo sinal para um ônibus que tinha como destino Copacabana. De outra vez, aproveitou a coincidência de datas de uma festa gay em Copacabana e a entrega das faixas de campeão ao Fluminense. As fotos e os dois títulos foram editados um acima do outro, como se compusessem um só evento. “Hoje é dia do orgulho gay” E logo abaixo: “Fluzão faz festa no Engenhão”.

Um dos destaques do jornal é a seção Gata da Hora, que traz diariamente a foto de uma jovem de biquíni ou nua, geralmente de costas. Os editores procuram selecionar mulheres que não se enquadrem no padrão estético das celebridades do cinema e das telenovelas. Escolhem moças atraentes que se identifiquem com o leitor. A ideia é criar um simulacro do cotidiano. Algo do tipo “esta aqui está ao meu alcance” ou “esta eu vejo todo dia uma igual na minha comunidade”. É como se a sensualidade abandonasse as telas e desembarcasse na porta de casa.

Mesmo com quase 1 hora e 20 minutos de duração, o filme de Ângelo Defanti consegue manter a atenção porque alterna depoimentos curtos e exibe capas que contextualizam as falas dos entrevistados. Uma de suas qualidades é a intervenção discreta do entrevistador na narrativa. A participação do diretor está na edição dos trechos selecionados em fundo neutro. O espectador é que deve tirar suas próprias conclusões, assim como o leitor de um bom jornal.

Pela disposição de manter um certo distanciamento crítico, Meia hora e as manchetes que viram manchete deve ser visto por profissionais e estudantes de Comunicação como ponto de partida do debate sobre o jornalismo que realizamos no Brasil, num momento de transformações avassaladoras na forma de produzir e consumir informação.

O documentário não aponta os criadores do Meia Hora. Ouve depoimentos de jornalistas, publicitários e a empresária Gigi de Carvalho, filha de Ary de Carvalho, o antigo dono do jornal. Todos dão entender que contribuíram para o nascimento do jornal. Mas não importa muito quem foi o pai da criança, porque a receita do jornal popular, com pitadas de sensacionalismo e exploração do grotesco, é ainda mais antiga que os filmes de Orson Welles.

Veja o trailler do documentario:

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João Batista de Abreu é jornalista e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense