A observação de duas das mais destacadas revistas semanais brasileiras, pelo critério de circulação, nos dá a oportunidade de analisar os paradigmas adotados para a edição dos chamados grandes temas – que incluem, obviamente, a macroeconomia, as reformas do Estado, os comportamentos de massa e, claro, o estado do mundo.
Veja e Época têm procurado acompanhar os debates sobre o estado do mundo, que dominam a agenda internacional, da mesma forma que os grandes diários. Mas, como toda a imprensa, limitam sua visão ao problema do terrorismo, do potencial de risco do programa nuclear do Irã e da Coréia do Norte, e resvalam pelo problema ambiental global. Pelo fato de se tratar de revistas semanais, é de esperar que contribuam com reportagens mais consistentes do que as dos jornais. No entanto, observa-se no material das semanais a mesma limitação que se pode constatar nos diários. É como se os editores trabalhassem com o freio de mão puxado: nada além dos lugares-comuns.
Elas nos abriram essa vitrina, por exemplo, em suas edições de fim de ano, ambas tratando dos grandes problemas produzidos pela exploração indiscriminada do meio ambiente e pelos efeitos sociais daninhos do sistema econômico global. Ambas adotam um viés claramente conservador do tema, e nenhuma delas, por isso mesmo, se aprofunda nas razões pelas quais a humanidade enfrenta a pior crise de toda sua história. É como se a crise ambiental e social que vivemos não tivesse culpados.
Mudanças em curso
Na verdade, o que transpira da imprensa em geral é uma insuperável resistência a colocar em xeque o sistema econômico mundial. Como se os editores quisessem evitar cair num viés ‘esquerdista’. Os problemas são abordados de maneira linear e pontual, embora se saiba que não há soluções simples para os grandes e complexos desafios que se apresentam à humanidade neste começo de século.
Tem esse sentido a pretensiosa reportagem de Veja sobre algumas propostas mirabolantes de projetos para a redução do problema do aquecimento global. Escudos para rebater de volta ao espaço as radiações solares, pulverizadores de nuvens para ‘impermeabilizar’ a atmosfera terrestre, bilhões de guarda-sóis destinados a compensar os buracos na camada de ozônio, são algumas das curiosidades apresentadas pela revista.
Como entretenimento intelectual, nada a opor. Os editores de Veja, como a direção da maior rede de televisão do país, devem considerar seus leitores mais ou menos no padrão Homer Jay Simpson, o atrapalhado funcionário da usina nuclear de Springfield, na popular série de desenhos animados. Sim, a humanidade corre grandes riscos por causa da exploração indiscriminada dos recursos naturais. Mas Veja quer nos convencer de que não é preciso radicalizar. A qualquer momento, um cientista vai inventar um jeito de quebrar o galho do planeta. O resto é catastrofismo desses ecochatos.
É unanimidade na comunidade científica internacional – e fato aceito pelos organismos multilaterais, entre eles o Banco Mundial – que não há como remediar com medidas paliativas a enorme crise em que metemos o planeta. É verdade aceita pelas grandes corporações, pelo sistema financeiro global e pelos órgãos encarregados de prevenir catástrofes, que o sistema precisa mudar.
E o sistema está, de fato, passando por grandes transformações. A lei Sarbanes-Oxley, criada para colocar sob controle social as ações das grandes empresas, as novas diretrizes de contabilização financeira, social e ambiental disponíveis desde o mês passado e o processo de criação da norma de sustentabilidade ISO 26000 são algumas evidências dessas transformações. O próprio sistema econômico mundial aceita a idéia de que precisa se reciclar, mas nossos mais importantes órgãos e imprensa se mostram mais realistas que o rei.
Debate escondido
Nossa imprensa, como mostra Veja, sintetizando o pensamento da maioria das grandes redações, ainda trata o tema sustentabilidade sob a ótica das ações sociais filantrópicas e das iniciativas pontuais em relação ao meio ambiente. Para nossa imprensa, a vanguarda da sustentabilidade são aqueles empresários que financiam escolas de batuque em bairros pobres ou que aparecem na fotografia plantando um pé de flamboyant. Depois, distribuem seus ‘balanços sociais’, com a indefectível fotografia da creche com crianças de variadas etnias, e com o funcionário negro na frente do grupo, na foto da festa de confraternização da firma.
No resto do mundo real, a questão da sustentabilidade está imersa num profundo debate ideológico. De um lado, os generosos filantropistas que pagam assessorias para colocar na mídia seus projetos ‘sociais’ e ‘ambientais’ – esses não querem mudanças no sistema. Do outro lado, os estrategistas que procuram meios de estruturar a gestão das empresas sobre um arcabouço sustentável – são os novos revolucionários, uma vanguarda que entende a necessidade de discutir as raízes do sistema capitalista.
Há farta literatura a respeito desse embate. A organização norte-americana Rocky Mountain Institute publicou há mais de cinco anos o resultado de pesquisas que apontam a necessidade de transformar o sistema produtivo, indicando um modelo que chamou de ‘capitalismo natural’. A International Finance Corporation, órgão financeiro do Banco Mundial, vem estimulando a mudança nas práticas de governança, exigindo que as empresas não sejam mais tratadas como feudos isolados da sociedade. Mas, para nossa imprensa, a necessidade de reduzir as perversidades do sistema capitalista ainda soa como propaganda comunista.
Quando uma publicação importante como Veja tenta nos convencer de que podemos continuar poluindo o ar, porque algum cientista maluco vai colocar um guarda-sol na estratosfera, seus editores não estão apenas entretendo a sociedade com curiosidades mais ou menos científicas. O que ela está fazendo, na verdade, é tentando evitar que o debate chegue ao ponto em que uma mudança real no sistema capitalista venha a ser exigida pela sociedade.
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Jornalista