Com mais de 50 anos de carreira, o jornalista Stenka Calado trabalhou a maior parte de sua vida profissional na ‘cozinha’ de redações como o Correio da Manhã, Folha de S.Paulo e Estadão. Também operou por mais de uma década em assessorias de imprensa. Nos últimos dez anos, aliou-se a Rogério Medeiros na revista Século, hoje www.seculodiario.com, um dos endereços digitais mais batidos de Vitória, ES. Neste depoimento, Stenka conta sua história.
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Nomes de revolucionários
Conte a sua estreia como repórter.
Stenka Calado – Minha primeira reportagem pela Imprensa Popular foi no dia da chegada da Seleção brasileira campeã do mundo em junho de 1958. Me mandaram para o aeroporto do Galeão. Eu tinha completado 18 anos. Fui com uma calça emprestada por um tio e um paletó branco emprestado por outro parente. Foi minha sorte: confundido com um garçom, pude circular livremente no meio daquela confusão. Passei boa parte do dia entrevistando craques: Didi, Nilton Santos, Bellini… No final da tarde, ditei a matéria por telefone. Não pense que era fácil. Levava horas.
Por que você tem esse nome estranho?
S.C. – Homenagem a Stenka Razin, espécie de Robin Hood russo, um líder cossaco que infernizou a vida do czar e, após a vitória da Revolução, foi promovido post morten a tenente do Exército Vermelho. Stenka Razin era o que se pode chamar de cão chupando manga. Lampião perto dele era fichinha. Quando soube pelos líderes da Revolução que o objetivo do levante era derrubar o czar, ele invadiu o palácio, foi capturado, pendurado num poste, esquartejado e teve o corpo arrastado pelas ruas de Moscou para servir de exemplo. Nosso Tiradentes não sofreu tanto.
E seus irmãos também têm nomes de revolucionários?
S.C. – Sim, meu pai só lia literatura revolucionária. Minha irmã mais velha ganhou o nome Nadedja, que vem de Nadejda Krupskaya, companheira de Lenin. Klara, a irmã nascida logo depois de mim, foi batizada em homenagem a Klara Zetting, ex-deputada do Partido Comunista Alemão, fuzilada pelos nazistas como responsável pelo incêndio do parlamento alemão. Meu irmão Marat foi homenagem a Jean-Paul Marat, líder da Revolução Francesa, que morreu degolado. A Ludmila ganhou esse nome em homenagem a uma patriota russa que, segundo meu pai, matou mais de mil nazistas durante a II Guerra Mundial. Por último veio a Olga, em homenagem à nossa conhecida Olga Benario, alemã, mulher de Luiz Carlos Prestes, executada na Alemanha depois que Getúlio Vargas a entregou a Hitler.
Morto com um tiro no coração
Afinal, seu pai fazia o quê?
S.C. – Digamos que era revolucionário. Originalmente se chamava José Ferreira Guimarães, filho de imigrantes portugueses, ex-militantes do Partido Comunista Português que aportaram em Recife fugindo da ditadura salazarista. A exemplo do pai, trabalhava como barbeiro. Preso na ditadura do Estado Novo, meu pai foi libertado em precário estado de saúde pelas torturas sofridas. Quando se recuperou, entrou para a clandestinidade, tirando novos documentos com o nome de Jaime Calado. Com esse nome se casou com mamãe, ainda em Recife, onde sofria tenaz perseguição da polícia política pernambucana. Quando aparecia qualquer pichação na cidade com o timbre do Partido Comunista, ele era chamado a prestar depoimento e invariavelmente detido. Então resolveu fugir com a mulher e os dois primeiros filhos, Nadedja e eu, ainda bebês.
Fugiram para onde?
S.C. – Para João Pessoa, na Paraíba. Ele ingressou na Polícia Militar, que estava precisando de barbeiro. Um ano depois, suspeitando ter sido reconhecido por um oficial na barbearia do quartel, resolveu fugir para o Ceará. Minha mãe contava que o tal oficial, enquanto era barbeado por papai, olhava fixamente para ele, pelo espelho, e dizia: ‘Acho que te conheço… mas não sei de onde.’
Desta vez a fuga foi para…
S.C. – …Fortaleza. Assistido pelo Partidão, o ex-barbeiro Jaime Calado virou repórter de O Democrata. Na época, o PCB tinha um jornal diário em cada capital. Foi como repórter e orador nos comícios do partido que ele se tornou conhecido na capital cearense. Chegou a ser considerado um dos melhores oradores do Estado, o que não é pouca coisa no Ceará. O casal teve mais quatro filhos em Fortaleza: Klara, Marat, Ludmila e Olga.
E como terminou a história dele?
S.C. – Foi morto por um comando paramilitar fascista na campanha presidencial de 1949, quando Getúlio se elegeu, apoiado, inclusive, pelo Partidão. No dia 29 de julho de 1949, contrariando decisão do Comitê Central do partido, papai resolveu impedir que Plínio Salgado, candidato a presidente pelo PRP, discursasse num comício marcado para a Praça José de Alencar, no centro de Fortaleza. Mobilizou a família – engordada pela presença dos pais de mamãe e seus filhos e netos – para a tarefa de preparar panelões de angu com pimenta para jogar nos galinhas-verdes que se atrevessem a aparecer na praça.
Habilidoso artesão, ele mesmo montava os palanques sobre os quais discursava. Estava ocupado nessa tarefa quando alguém lhe cochichou que os fascistas estavam espancando um estudante no interior do teatro. Ele largou as ferramentas e correu em direção à porta do teatro. Ao pisar no segundo degrau da escadaria que levava à entrada principal do teatro, foi golpeado na cabeça e caiu, desacordado. Um homem, que mais tarde se soube ser o tenente Bezerra, do Exército, conhecido integralista cearense, deu-lhe um certeiro tiro no coração. Com Bezerra estavam um investigador do Dops cearense e um guarda ferroviário.
Multidão de 5 mil pessoas no enterro
E sua mãe também era militante?
S.C. – Sim. Papai havia marcado encontro com mamãe na praça às quatro da tarde. Ela chegou pontualmente e, naquele clima de guerra, foi levada à escadaria do teatro, onde o corpo de papai continuava estendido sobre uma poça de sangue. Comunistas e integralistas já se engalfinhavam no meio da praça, enquanto no palanque que papai deixara quase pronto os oradores do partido se sucediam. Mamãe subiu no palanque e também discursou. A Polícia montada invadiu a praça, feriu muita gente, inclusive à bala, mas no balanço final só havia mesmo um morto: papai.
E como você ficou sabendo da tragédia?
S.C. – Eu estava em casa, no bairro operário do Pirambu, onde morávamos. Minha irmã Nadedja preparava um lanche para nós. Éramos vizinhos de um casal de portugueses simpatizantes do Partidão, donos de uma vendinha, de onde saía o som de um rádio transmitindo ao vivo os acontecimentos da praça José de Alencar. Nossos vizinhos aumentaram o som do rádio para que ouvíssemos o que estava sendo noticiado. Mas nós só conseguíamos ouvir o nome de papai, sem entender o que acontecia. Até que o casal apareceu, em prantos, e nos comunicou o assassinato.
O que vocês fizeram?
S.C. – Fomos todos para a casa dos vizinhos e ali ficamos, até que, já bem tarde da noite, um jipe do jornal encostou e nos levou para a casa de nossos avós maternos, no centro da cidade. Era lá que o corpo de papai estava sendo velado. A casa, um enorme casarão situado no número 497 da rua Doutor João Moreira, próximo à Praça da Estação, era um misto de pensão e hospedaria, onde se abrigavam cidadãos vindos do interior. Uma fila dava volta no quarteirão. Na entrada, um enorme pote de barro recolhia donativos em dinheiro para a família do morto. O enterro aconteceu na tarde do dia seguinte, em cortejo a pé. Os jornais da época calcularam a multidão que acompanhou o enterro em 5 mil pessoas. À beira do túmulo discursaram políticos de todos os partidos que apoiaram a eleição de Getúlio.
Minha primeira matéria foi uma coletiva de Brizola
O que aconteceu depois?
S.C. – Com o dinheiro arrecadado no velório, o partido construiu uma casa para nós no bairro do Pici. E papai virou nome de rua no hoje elegante Bairro de Fátima, que visitei há uns quatro anos.
Como vocês foram parar no Rio?
S.C. – No início dos anos 1950, aconteceu a grande seca que matou muita gente de fome no Nordeste. Nós fugimos dela num navio da frota do Loide Brasileiro que Getúlio mobilizou para levar mão-de-obra não qualificada para o Rio e São Paulo. Escolhemos o Rio, onde concluí o curso científico (atual ensino médio) e ingressei no jornalismo aos 18 anos.
Jornalismo partidário?
S.C. – Fui trabalhar como repórter-auxiliar na Imprensa Popular, diário do PCB, enquanto mamãe ia para a oficina como revisora. O jornal só se sustentou mais um ano. Foi um dos últimos da imprensa partidária a fechar as portas.
E você foi fazer o quê?
S.C. – Na idade de prestar serviço militar, fui ‘excesso de contingente’ do Exército por três anos seguidos. Sem o certificado de reservista, não consegui trabalhar de carteira assinada. Então, sobrevivi nesse período fazendo bicos (basicamente, vendas em domicílio). Quando finalmente fui liberado do serviço militar em caráter definitivo, bati à porta da Gazeta de Notícias – diário de tradição getulista – e fui chamado pelo gaúcho Osmar Flores, secretário da redação, para fazer um teste. Minha primeira matéria foi uma coletiva de Leonel Brizola na ABI. O caudilho havia encerrado um governo badaladíssimo no Rio Grande do Sul – quando, entre outras proezas, nacionalizou a Bond & Share – e se mudara para o Rio, onde anunciou sua candidatura a deputado federal pelo PTB do ex-Distrito Federal. Fui aprovado no teste e Brizola eleito com a maior votação da história do Rio.
Investigadores do Dops procuravam um tal de copidreque
Onde mais você trabalhou?
S.C. – Da Gazeta de Notícias, pulei, sucessivamente, para O Dia/A Notícia, Luta Democrática, O Jornal, Rádio Mayrink Veiga (brizolista) e Rádio Mauá (janguista). Em novembro de 1968, estava no Correio da Manhã, onde fiquei no lugar do secretário de redação, Aloisio Branco, que saíra de férias. Sob as ordens de Osvaldo Peralva, o redator-chefe, comandei as edições do jornal que, sem dúvida, contribuíram (mea culpa) para o AI-5, baixado em 13 de dezembro daquele ano. Afinal, o deputado federal Márcio Moreira Alves, autor do discurso que irritou os militares, era um dos articulistas do jornal, ao lado de Hermano Alves, Paulo Francis e outros ‘inimigos ferrenhos da ditadura’.
Você era chefe no Correio da Manhã e não sofreu nada?
S.C. – Foi um dos fatos mais curiosos da minha trajetória. Na manhã do AI-5, eu cheguei em casa da praia e, como sempre fazia antes de entrar no banho, liguei a TV. Em todos os canais aparecia no vídeo um cidadão vestido de preto, óculos fundo de garrafa, lendo um documento com ar de enfado. Era Gama e Silva, o ministro da Justiça, lendo o AI-5. Fiquei sabendo naquele momento que tudo estava proibido, absolutamente tudo. Menos (sorte minha) ir à praia. Quando o cara acabou a leitura, voltei para a praia e dei a notícia aos amigos frequentadores do Posto 9, ali em frente à antiga Montenegro (hoje, Vinícius de Morais). Muitos não acreditaram no que eu dizia e foram para casa conferir. O meu chefe do copy no Correio, Mário Rolla, foi dos poucos que acreditaram e com ele fiquei o resto do dia na praia. Só saímos para comer algo e acompanhar o resto dos acontecimentos pela TV lá de casa.
Você não foi trabalhar?
S.C. – É claro que não fui. Quem foi à redação se danou e dormiu várias noites no xadrez do Dops, que ficava ali pertinho do jornal (Rua da Relação com Gomes Freire). Deixei passar uns três dias e liguei para o jornal. Fui atendido pela editora de moda, Germana Delamare. Ela me contou que toda a cúpula do jornal, inclusive dona Niomar, fora presa. Muitos redatores e repórteres também. Naquela manhã, um grupo de investigadores do Dops voltara à redação procurando um tal de copidreque.
Fui editar a seção de culinária
Seria o chefe do copidesque?
S.C. – Rindo muito, Germana me disse que, debaixo de porrada, quando perguntados sobre determinados textos que haviam assinado na última edição do velho e aguerrido Correio da Manhã, alguns repórteres disseram não ser os autores daqueles textos. ‘Isso foi coisa do copy desk!…’, afirmaram. O jornal foi comprado por um grupo de empreiteiros, liderados pelos irmãos Alencar – um deles, Marcelo, virou governador e hoje é um dirigente tucano. Para não ser demitido por abandono de emprego, voltei a trabalhar. A redação era um deserto.
Trabalhou sob censura no Correio?
S.C. – Minha primeira tarefa foi editar a seção de culinária. A editora me avisou: ‘Na sala que era do Peralva está sentado um coronel que faz a censura das matérias. Quando acabar aí, me passa que eu levo lá para ele dar OK.’ A matéria era sobre o preparo de massas segundo os especialistas italianos. Uma matéria cheia de detalhes à qual dei o seguinte título: ‘O valor e a importância das massas’. A editora nem olhou o que eu havia feito. Pegou o material e foi para a sala do coronel. Voltou lívida, nervosíssima. A solução foi falar com o novo redator-chefe, Isaac Akselrud, o único não-esquerdista da cúpula. Ele estava malocado numa sala que a gente chamava de Butantã porque lá só tinha cobras. Me perguntou se eu queria mesmo ser demitido, eu disse que sim. Foi minha sorte. Dias depois fiquei sabendo que os salários começaram a atrasar.
A volta para Vitória
Foi aí que você se mudou para Sampa?
S.C. – Queimado no Rio, entrei de cara como subeditor de educação da Folha de S.Paulo, subordinado ao Perseu Abramo. Depois pulei para o Estadão. Em seguida, estava numa assessoria de imprensa – Impacto de Comunicação. Foi quando reencontrei num restaurante Henrique Caban, que assumira a administração da redação do Globo na gestão Evandro Carlos de Andrade. ‘Quer trabalhar no Globo? Se não cometeu crime de sangue, a gente tá aceitando’, ele falou. Fiquei oito anos no copy do jornal. Trabalhei até nos cadernos especiais.
Quando você trabalhou na imprensa de Vitória?
No início dos anos 1980, a convite de Rogério Medeiros, vim para A Tribuna, onde fui editor de local. De Vitória fui para Brasília, onde fiz uma reforma gráfica no segundo caderno do Correio Braziliense. Em seguida voltei para Sampa, a convite do meu amigo José Roberto Buitron, dono da Impacto, já então uma empresa de grande porte. Fiquei por lá uns cinco anos e fui chamado ao Rio pelo Mário Rolla para assessorar Eliezer Baptista, então presidente da Vale do Rio Doce.
Afinal, do jornalismo partidário à assessoria de imprensa, você deu uma volta quase completa.
S.C. – Quase. Eliezer estava às voltas com uma tentativa de derrubada no Congresso, encabeçada pelo senador Severo Gomes e apoiada por Ulysses Guimarães. Fiquei cinco anos com Eliezer, no eixo Rio-Brasília, e depois fui para a Brasif, fazer o mesmo tipo de trabalho para Jonas Barcelos, que corria o risco de perder o monopólio dos freeshops de aeroporto por ingerência de políticos brasilienses de olho grande naquele maná de dinheiro em dólar. Depois de mais cinco anos de ponte Rio-Brasília, procurei Hélio Fernandes Filho, herdeiro da Tribuna da Imprensa, que me empregou como editor de economia. Fiquei lá dois anos e resolvi mudar pra Vitória. Cheguei aqui de surpresa, no final do século passado, liguei para o Rogério, que estava querendo voltar a ser jornalista, depois de ter sido primeiro-ministro de Vitor Buaiz. Foi quando ele me encomendou o projeto de uma revista mensal de atualidades sobre coisas daqui. E aqui estamos tocando esse barco. A única grande mudança é que a mensal impressa virou um diário digital.
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Jornalista, Osório, RS