Quem levantou a lebre foi o jornalista Paulo José Cunha, editor do site Telejornalismo em Close, depois de alertado pelo também jornalista Pedro Rogério, ambos de Brasília: a sangria de reportagens, artigos, pautas, notas e análises sobre a crise política (e moral) que tomou conta do governo e do PT não foi desatada com a revelação, pela revista Veja, do conteúdo do vídeo em que o funcionário dos Correios Maurício Marinho recebia, como se fosse a coisa mais natural do mundo, uma propina básica de 3 mil reais.
A partir daquela cena escabrosa, das entrevistas do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) à Folha de S.Paulo e das investigações que se seguiram, a nação atônita foi tomando conhecimento de uma enxurrada de revelações quase sempre malcheirosas a respeito de compra de consciências e de apoios parlamentares; financiamento heterodoxo de campanhas e de partidos políticos; prevaricações, concussões e ladroagens de todo tipo e qualidade; e, como se fosse pouco, fortíssimas suspeitas de uso de dinheiro público para irrigar as tenebrosas transações do lobista Marcos Valério com os bancos que davam suporte ao, digamos, esquema.
Pois bem: o fundamental de tudo isso foi contado no artigo ‘Para administrar uma fortuna’, assinado pelo jornalista Carlos Chagas e publicado na Tribuna da Imprensa em… 28/2/2004 [veja nesta página a íntegra do texto] – 28 de fevereiro de 2004, reitere-se. O veterano repórter produziu um tremendo furo que, malgrado sua gravidade e importância, não mereceu repercussão alguma na mídia.
Sete meses depois da matéria de Chagas, os repórteres Paulo de Tarso Lyra, Hugo Marques e Sérgio Pardellas publicaram, no Jornal do Brasil (24/9/2004), reportagem sob o título ‘Miro denuncia propina no Congresso’ na qual, pela primeira vez, avançava-se sobre a mutreta que mais tarde se convencionaria chamar de ‘mensalão’. Esta matéria provocou a convocação de uma comissão de sindicância na Câmara, que virou daqui, mexeu dali, e arquivou sua apuração por falta de provas. Como resultado final deste esforço, sobrou apenas um atestado a mais de que este mundo de fato dá voltas.
A seguir, uma entrevista com Carlos Chagas. Com 45 anos de profissão, ele se considera um jornalista ‘insignificante’, embora, de sua base em Brasília, produza quatro comentários políticos diários para a Rádio Jovem Pan e um comentário também diário para a emissora de TV CNT – onde também apresenta, três vezes por semana, o programa de entrevistas Jogo de Poder –, além de um artigo cotidiano para a Tribuna da Imprensa, também distribuído a outros 15 jornais. Na seqüência da entrevista, nota de Paulo José Cunha dada no Telejornalismo em Close, seguida da matéria reveladora de Chagas publicada na Tribuna.
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A propósito de seu furo na Tribuna da Imprensa, em fevereiro do ano passado, hoje praticamente só se fala daquilo que você descobriu um ano e meio atrás. Como conseguiu suas informações?
Carlos Chagas – Você está querendo que eu revele minhas fontes? Assim você me ofende… Existe na Lei de Imprensa, há muito tempo, desde antes da ditadura, um artigo que determina o sigilo da fonte. O sigilo da fonte é um direito do jornalista.
Compreendo, e não estou pedindo que revele suas fontes. Não quero nomes, mas apenas que conte como farejou o assunto.
C.C. – Há um costume entre leitores, e até entre nós, jornalistas, de imaginar que apenas uma fonte revelou esta ou aquela informação. Não é assim. Tenho 45 anos de imprensa e sempre soube que uma informação não vem de uma fonte só. Uma informação vem de uma coisa que você escuta e o coloca em alerta; depois escuta outra, e escuta outra… A partir de um certo tempo, você se acha não só no direito, mas no dever, de publicar aquilo porque já tem indicações claras. E foi assim que eu, um ano e meio atrás, resolvi publicar o que publiquei.
A que atribuir o desprezo que um assunto tão importante quanto aquele mereceu na época? Não houve suítes, e supõe-se que os pauteiros leiam os jornais. Por que aquela bomba não teve desdobramentos nos outros veículos?
C.C. – Aí temos duas vertentes. Uma, é da minha insignificância como jornalista. O artigo saiu na Tribuna da Imprensa e em mais 15 jornais do interior – jornais que assinam a coluna, mas que não são jornalões. Outra vertente é a de que podem ter tentado [apurar a história], mas não chegaram a provas. Isso é muito difícil provar. Agora está sendo provado, há depoimentos [na CPMI], mas no começo a coisa era muito difícil. Como eu não sou mais chefe de redação, não sou diretor de sucursal [comandou a sucursal do Estado de S.Paulo em Brasília], e não tive condições de mobilizar meus repórteres – que eu não tenho mais – para saírem atrás do assunto, acho que alguém pode ter feito isso, acredito até que tenha feito, mas não obteve sucesso.
À época houve alguma reação das partes mencionadas no seu artigo?
C.C. – Pelo que eu soube, a matéria repercutiu em algumas agências de publicidade. Alguns publicitários ficaram apreensivos, surpresos, mas [a repercussão] se deu apenas na área publicitária. Na imprensa mesmo, nada.
Como avalia a cobertura que a mídia tem dado à atual crise política? Há uma amarração clara e suficientemente inteligível para que o distinto público compreenda o que de fato está se passando?
C.C. – Eu acho que a cobertura está perfeita. Pode haver um excesso aqui, um exagero ali, uma barriga acolá, mas, de um modo geral, a imprensa está transmitindo aquilo que a opinião pública tem o direito de conhecer. A imprensa está cumprindo seu papel. Esta cobertura é um dos pontos altos da imprensa.
Não há muita mistura entre o que é relevante e o que é acessório?
C.C. – O que é relevante vai para a primeira página, para a manchete. O que é acessório, e que talvez depois de transforme em relevante, às vezes é publicado ou não é publicado. A imprensa não é uma ciência exata.
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Carlos Chagas: o homem que soube antes
Paulo José Cunha
28/7/2005 – Logo depois da distribuição da coluna Telejornalismo em Close, intitulada ‘O furo que ninguém deu’ [vem abaixo], recebi e-mail do jornalista Pedro Rogério, amigo de outros carnavais, me corrigindo: havia, sim, um colega nosso que havia dado a notícia das falcatruas de Marcos Valério em conluio com a direção do PT. Isto há um ano e quatro meses. Já falava em SMPB, contratos de publicidade, malas recheadas de dinheiro etc. O autor do furo foi o articulista Carlos Chagas, da Tribuna da Imprensa, em pequeno artigo publicado na edição de 28/2/2004, reproduzido em mais duas dezenas de jornais e revistas pelo país. Uma história tão inverossímil (!) que ninguém viu nem ligou.
Imediatamente liguei para o Chagas, amigo e ex-colega na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, pedindo-lhe mais informações sobre a matéria. Como conseguira aqueles dados? ‘Fontes’, respondeu suavemente. Que fontes? ‘Fontes, ora essa!’ Fontes de que área? ‘De várias áreas’. Da área política ou da área econômica? ‘Da área política e da área econômica’.
Fiquei por aí. Afinal, como eu próprio defendo com unhas e dentes, jornalista tem o direito de proteger suas fontes. E jornalista mineiro é fogo: nem debaixo de tortura chinesa eu conseguiria arrancar mais alguma coisa. E nem precisava. O artigo fala por si. Em homenagem ao querido amigo Carlos Chagas, autor do furo, TJ em Close reproduz a íntegra de seu artigo, acompanhada de nosso pedido de desculpas e do e-mail do Pedro Rogério, puxando-me correta e justamente a orelha.
Querido Paulo.
O Chaguinhas, ano e meio atrás (ou até mais do que isso) publicou uma coluna denunciando o Marcos Valério e descrevendo, até mesmo, a transação de malas de dinheiro. O furo é dele. Vale a pena alguém como você fazer este registro histórico, entrevistando-o. ‘O homem que soube antes’, podia ser o título. Abraços do Pedro Rogério.
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Para administrar uma fortuna
Carlos Chagas
Tribuna da Imprensa, 28/2/2004 – Ruim de grana o PT nunca esteve. Desde sua fundação, 24 anos atrás, seus filiados destinam mensalidades obrigatórias ao partido. Com o tempo, elegeram-se gradativamente vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, prefeitos e governadores petistas, bem como um monte de assessores, secretários e auxiliares nomeados para servi-los. Faz muito ficou estabelecido que cada um destinaria 30% de seus vencimentos para o PT. Nada mais justo, natural e lógico, apesar de cruel.
Até 2002, os recursos equilibravam receita e despesa, destinadas às campanhas eleitorais e à ampliação do partido. Mesmo as sobras das contribuições amealhadas para as campanhas presidenciais de 1998, 1991 e 1989, diluíram-se nos gastos imprescindíveis.
Foi a partir da recente campanha presidencial, porém, que o dinheiro começou a sobrar. Com a posse do presidente Lula e a nomeação de milhares de petistas para a administração federal, mais recursos apareceram.
A preocupação do presidente anterior, José Dirceu, e do atual, José Genoíno, passou a ser como administrar a bolada, cujo montante, para dizer a verdade, só uns poucos conhecem. Mas é muito grande.
Quem passou a sofrer foi o diretor-financeiro do PT. Delúbio Soares jamais pensou em tornar-se banqueiro ou investidor no mercado. Assim, para ajudá-lo, foi buscar um operador profissional, encontrado na pessoa do publicitário mineiro Marcos Valério, da SMPB, de Belo Horizonte. Agência por sinal aquinhoada em 2003 com contratos de publicidade no valor aproximado de 150 milhões de reais, provindos do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Correios e Telégrafos e Petrobrás.
Há algum tempo, a capital mineira funciona como uma espécie de caixa central do PT, de onde flui numerário bastante parta as despesas partidárias, agora com ênfase para as campanhas de outubro. No caso, até servindo a outros partidos, como o PP, PL e PTB, cujos emissários não raro deixam o aeroporto da Pampulha com malas recheadas, em espécie. É claro que tudo ocorre sob a férrea fiscalização dos dirigentes do PT. José Dirceu e José Genoíno são informados de cada repasse.
Dispondo de recursos como nunca dispôs, o PT imagina alavancar as candidaturas de seus candidatos em todo o país, em especial às prefeituras das capitais, mas sem descuidar dos grotões, capazes de duplicar o número de prefeituras do partido e de multiplicar o número de seus vereadores.
A pergunta que se faz é se a Receita Federal acompanha tão diligentemente assim as aplicações, os investimentos e as doações, da mesma forma como a Justiça Eleitoral acompanhará.
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O furo que ninguém deu
P.J.C
Outro dia, durante a gravação do Comitê de Imprensa, programa que apresento na TV Câmara, o jornalista Franklin Martins contou que o grande furo de sua vida aconteceu quando, há alguns anos, um funcionário da Câmara aproximou-se dele e segredou, baixinho, que estava havendo ‘uma confusão danada lá pras bandas da Comissão de Orçamento’. E dava detalhes escabrosos, como a suspeita de que o principal assessor da Comissão, um cara mulherengo, havia mandado matar a própria esposa, depois que ela descobrira a corrupção em que o marido estava metido.
Acostumado a esse tipo de abordagem, Franklin Martins, macaco velho escolado, deu de ombros e seguiu em frente. Afinal, todo dia aparece um desocupado ali pelos corredores inventando uma história doida igual a essa. Fôssemos dar ouvidos a tudo que nos contam… Franklin esqueceu o assunto e foi cuidar da vida. Até explodir o famoso escândalo dos anões do Orçamento, onde se descobriu, entre outras coisas, que um certo José Carlos Alves dos Santos engordava o próprio orçamento com as grossas propinas que recebia para incluir emendas que beneficiavam grandes empresas. José Carlos terminaria preso por aceitação de suborno e sob a acusação de ter mandado executar sua mulher, Maria Elizabeth Lofrano. No livro Jornalismo Político (Ed. Contexto, 138 págs, R$ 29), que acaba de lançar, Franklin conta a mesma historinha e acrescenta, sem esconder a frustração: ‘A melhor história do ano bateu à minha porta, mas eu não a abri porque sabia tudo sobre crimes passionais e tinha coisas mais importantes a fazer’. Ou seja: o maior furo da vida, Franklin Martins não deu, levou. Mas, por causa dele, aprendeu a ser ‘menos sabido e mais curioso’.
No mesmo Comitê de Imprensa, outro dia, duas repórteres altamente experientes, Luiza Damé (setorista do Palácio do Planalto de O Globo) e Dolores Mendes (editora em Brasília do programa Tudo a Ver, de Paulo Henrique Amorim, na TV Record) reconheceram que o maior furo que a imprensa brasileira já levou foi dado por esse tal de Marcos Valério, até outro dia um desconhecido até ser acusado de ser o operador do ‘mensalão’. Difícil acreditar se movimentava em todas as áreas do governo, fazendo com que milhões de reais fossem pousar nas contas de suas empresas, sem que nenhum jornalista de Brasília farejasse a sua presença.
Para alguns repórteres, a razão é simples: cada vez mais acomodada à cobertura do dia-a-dia do poder, não tem sobrado tempo para o salutar exercício da chamada imprensa de investigação, que serve para desencavar assuntos de grande relevância. Ou pelo menos para se manter atenta ao que acontece debaixo de seu nariz. Na época de Collor, bem antes da explosão provocada por aquela entrevista do irmão Pedro, Brasília e meia já sabiam e investigavam a origem do mau cheiro que se espalhava a partir do gabinete de PC Farias. Era conversa obrigatória em toda roda de jornalistas. Pois agora, até aparecer aquela fita espetacular do Marinho dos Correios enfiando 3 mil reais no bolso, seguida da entrevista-bomba de Bob Jefferson à repórter Renata Lo Prete, da Folha, ninguém desconfiava que havia um gato podre debaixo da mesa de despachos do presidente Lula.
Ou seja: os furos estão passando debaixo de nossos narizes e não os percebemos. Talvez porque tenhamos ficado mais sabidos, e não devemos (ou devíamos) desconfiar de governo eleito sob a bandeira da ética, acima de qualquer suspeita. Mas a cada depoimento nas CPIs, a cada cruzamento de documentos, mais vai se abrindo o leque de atores da ópera bufa-se-não-fosse-trágica em que vamos nos atolando. São centenas de deputados de vários partidos metidos numa história escabrosa. E até o Marinho ser flagrado metendo as três milocas no bolso, não sabíamos de ri-go-ro-sa-men-te nada. No final de 2004, quando Miro Teixeira falou pela primeira vez do mensalão ao JB, o jornal, ameaçado de processo, recolheu os flaps e preferiu fazer o jogo do então presidente da Câmara, João Paulo Cunha, que exigiu uma retratação. Em vez de aprofundar a investigação o jornal calou-se e enterrou o assunto, até ele se transformar na maior erupção de lama podre dos últimos tempos. O próprio João Paulo Cunha iria surgir no meio da explosão, secundado pela esposa Márcia Regina, flagrada sacando dinheiro nas contas de Valério, no dia seguinte a uma reunião entre o publicitário e o deputado.
Dos tempos de PC Farias, passando pelo escândalos dos anões, aos dias de hoje, bem que temos aprendido (embora ainda cometamos bobagens como aquela lista de nomes de assessores de petistas, irresponsavelmente levada ao ar pelo Jornal Nacional). Mas naquela época pelo menos se farejava alguma coisa. Está havendo ‘uma confusão danada lá pras bandas da Comissão de Orçamento’, dizia alguém a um cético Franklin Martins. ‘O PC Farias está cobrando pedágios altíssimos para tudo quanto é obra no governo Collor’, ouvíamos entre as mesas do Piantela. O resto da história todo mundo conhece.
Já do atual escândalo, não sabíamos de nada. Esquecidos de olhar debaixo do tapete, comentávamos a ausência de articulação política do governo e o conservadorismo de sua política econômica. Se algum repórter, comentarista, editor ou analista sabia das falcatruas de um certo Marcos Valério, que atire a primeira mala. E desta vez não sabíamos porque não nos preocupamos em saber, até porque até outro dia era visto com maus olhos quem ousasse desconfiar do PT, o partido da ética. Pior é que agora nem a desculpa do Franklin podemos dar. Os poucos que sabiam de alguma coisa – os meninos do JB – enfiaram a viola no saco. E o resto passou batido, mesmo depois da matéria do JB. Será que alguém aí tem alguma explicação para essa, digamos, síndrome de desatenção? Ou o que precisamos mesmo, como aprendeu o Franklin depois daquele furo, é ser um pouco menos sabidos e mais curiosos?