A crise das charges começou com um ultraje e se desdobrou numa sucessão de equívocos.
O ultraje foi a publicação de uma série de caricaturas de segunda em um jornal dinamarquês idem, a pior das quais, eticamente falando, foi mostrar um rosto árabe, simbolizando o profeta Maomé, com o pavio de uma bomba saindo da sua cabeça.
O desastre seguinte – no que dá o poder da fé! – foi a enfurecida reação da rua árabe-muçulmana. O Islã considera uma blasfêmia qualquer representação da efígie do Profeta. O motivo, evitar a idolatria. Um dos efeitos, os incomparáveis arabescos que substituíram a figura humana na arte dos seguidores de Maomé. Mas as manifestações e os protestos diplomáticos deixaram de visar, como se verá, o verdadeiro problema.
A eles, em todo caso, se seguiu a tonta decisão de diversos jornais europeus de republicar as caricaturas, só para fazer praça do princípio da liberdade de imprensa. O caso mais notório foi o do parisiense France-Soir, cujo redator-chefe foi por isso demitido pelo dono do grupo franco-egípcio que publica o diário.
A começar do dinamarquês, os jornais confundiram o direito de publicar com a obrigação de publicar, como bem observou o editorial do Guardian, de Londres, da sexta-feira (3/2). De fato, não é porque tenho o direito de dizer o que penso devo dizer o que penso quando e como bem entender.
Poder dos estereótipos
O fato de a censura prévia ser incompatível com a democracia e a vida em sociedades civilizadas não significa que a livre expressão não possa e não deva ser punida, quando infringe valores essenciais dessas mesmas sociedades, como a incitação ao preconceito e ao ódio.
No Brasil, o Ministério Público decerto processaria a publicação que fizesse o que fez o Jyllands-Posten. Mas o processo se justificaria por uma razão diferente daquela que propaga a santa ira islâmica.
Como escreveu o jornalista Mauro Malin no blog Em Cima da Mídia, deste Observatório – e, salvo engano, foi o primeiro a fazê-lo no Brasil – a caricatura é condenável por ser acima de tudo uma manifestação de racismo.
Pouco deve importar se o autor quis ou não escarnecer do fundador de uma religião que conta hoje com 1 bilhão de fiéis. Ou usá-la para atacar a violência dos fanáticos a golpes de bico de pena. O que ele fez, desenhando um pavio na cabeça de Maomé, foi declarar que todo muçulmano é terrorista. Por ser muçulmano.
Isso é racismo na medida em que culpa um grupo humano inteiro pelos assassinos insanos que existem no seu meio. Judeus, ‘sanguessugas’, e negros, ‘bestiais’, conheceram na pele o infame poder dos estereótipos. A desumanização de quem se odeia é o primeiro passo para destruí-lo ou escravizá-lo.
‘Limites e fronteiras’
E é racismo porque se encaixa como uma luva na crescente hostilidade dos europeus às suas populações islâmicas – a chamada islamofobia. Para os que as temem, desprezam ou abominam, as charges não têm nada de aberrantes. Imagine-se, para contrastar, o terremoto que seria a publicação – em um jornal europeu respeitável – do desenho de um judeu, à maneira das caricaturas nazistas.
Aliás, tem razão os que ao mesmo tempo condenam os cartuns europeus e o anti-semitismo no mundo árabe-muçulmano, de que é exemplo, como lembra o New York Times, a publicação e serialização dos ‘Protocolos dos Sábios de Sion’, o suposto plano-mestre judaico para dominar o mundo, inventado no começo do século 20.
Em suma, parece irrefutável o argumento do citado editorial do Guardian de que a liberdade de imprensa não existe no vácuo. ‘Existem limites e fronteiras – de gosto, leis, convenções, princípios ou juízos de valor. Todos esses constrangimentos importam e não podem ser automaticamente atropelados pela invocação do princípio mais amplo [do direito à livre expressão].’
[Texto fechado às 14h30 de 3/2]
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P.S. – Como que dando razão aos que dizem que a Veja (edição nº 1942) não dá uma dentro, a revista sustenta na capa da edição nas bancas neste sábado, 4/2, que blasfêmias devem ser toleradas.
Não que não devam, mas o que as charges infamantes fizeram foi pior do que uma blasfêmia: foi incitar ao ódio contra os muçulmanos, o que cabe perfeitamente bem na categoria ‘crimes contra a humanidade’.
É imperativo separar as coisas. Religiões são intocáveis apenas para os que as professam (embora se deva reconhecer a dificuldade em distinguir uma ofensa a um credo de uma ofensa aos seus crentes). Um agnóstico como este leitor não perderá o sono por ter visto um cartum tratando com sarcasmo essa ou aquela religião – ou todas.
Como disse certa vez, com pleno conhecimento de causa, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, o dos Versos Satânicos, poucas coisas no mundo fomentam tantos ódios e tantos crimes como as religiões.
O que deve ser intocável para todos é o direito comum aos seres humanos de não serem os membros de uma etnia, nacionalidade, crença religiosa, gênero e preferência sexual ridicularizados, ofendidos, ameaçados, perseguidos e punidos por palavras e atos que mereçam a mais viva condenação, de autoria de seus iguais de qualquer daquelas categorias.
Por fim, uma pergunta inocente: será que a Veja, ou, nesse caso, qualquer órgão de mídia de país de maioria cristã, defenderia a tolerância diante da blasfêmia se um órgão de mídia muçulmano, judaico ou leigo publicasse caricaturas tão baixas quanto as que criaram a crise das charges se o seu personagem fosse aquele a quem os cristãos denominam ‘Nosso Senhor Jesus Cristo’?
[P.S. acrescentado às 11h30 de 4/12]