Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Mentira e militância no jornalismo

Vencedor do Pulitzer, o maior prêmio do jornalismo norte-americano, autor de importantes reportagens e entrevistas, Jose António Vargas, ex-repórter do Wahington Post, tinha uma carreira promissora. Cobriu o massacre na Universidade Virgínia Tech, em 2007, dirigiu um documentário sobre a Aids, conseguiu uma impactante entrevista com Mark Zuckerberg, o criador da rede social Facebook. Há duas semanas, Vargas foi o motor de uma reviravolta em sua vida profissional ao admitir ser imigrante ilegal nos Estados Unidos. Durante 15 anos, escondeu até de seus amigos mais próximos que vivia com documentos falsos. Vargas deixou as Filipinas quando tinha 12 anos, mas só soube que sua situação era ilegal quatro anos depois, quando foi tentar tirar a carteira de motorista. A partir deste momento, escolheu esconder sua origem.

Anos depois, mesmo sabendo que corria o risco de ser preso ou deportado, decidiu contar sua história para mostrar aquilo que considera como crueldades e contradições das leis de imigração americanas. Em março deste ano, quando já trabalhava no Huffington Post, um dos mais influentes sites dos Estados Unidos, Vargas começou a escrever, em acordo com a direção do Washington Post, um longo artigo onde revelaria aos leitores sua situação ilegal. Dias antes da data acertada para a veiculação das informações, ele foi avisado de que o artigo não seria publicado. O silêncio só foi quebrado pelo concorrente New York Times, que publicou o texto do repórter na íntegra. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (5/7) discutiu duas questões centrais do jornalismo: a mentira e o limite da militância de jornalistas.

Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o jornalista Rosental Calmon, professor da Universidade do Texas, em Austin, onde dirige as cátedras Knight em Jornalismo e UNESCO em Comunicação. Rosental dirigiu o lançamento do primeiro jornal brasileiro na web, o Jornal do Brasil, em 1995. Em São Paulo, Dines recebeu os jornalistas Bernardo Kucinski e Roberto Cattani. Kucinski foi professor titular da Universidade de São Paulo (USP) por mais de 20 anos. Trabalhou na BBC de Londres, nas revistas Veja e Exame, no jornal Gazeta Mercantil e foi correspondente no Brasil do jornal britânico Guardian. Foi também assessor especial do presidente Luís Inácio Lula da Silva, para quem escrevia um informe diário. Roberto Cattani é presidente da Associação dos Correspondentes Estrangeiros no Brasil (ACE). Fotógrafo e escritor, é formado em Antropologia e cobriu o Oriente Médio durante uma década. É correspondente da agência italiana Ansa no Brasil.

Briga de concorrentes?

Antes do início do debate ao vivo, Dines comentou, em editorial, o embargo ao artigo do ex-repórter do Washington Post. “Jose António mentiu como cidadão, mas não mentiu como jornalista. E vai pagar por isso, pode ser preso ou repatriado. Mas os editores não se comoveram: barraram a matéria e afastaram o profissional. O concorrente, o New York Times, não vacilou e publicou a reportagem na íntegra com o dramático desfecho”, disse. Para Dines, na era da transparência, o jornal que desvendou o caso Watergate castigou “o jornalista que, por amor à verdade, sacrificou o seu futuro”.

A reportagem exibida pelo Observatório entrevistou o editor do caderno "Mundo" da Folha de S.Paulo, Fabio Zanini. Para ele, a questão da imigração nos Estados Unidos é crucial e estará presente nos debates das próximas eleições presidenciais. “Não é segredo nenhum que os dois jornais, New York Times e Washington Post, são concorrentes diretos e duros há décadas. É evidente que algum tipo de questão comercial e de mercado pode ter tido um papel, mas o fato é que também o outro extremo seria um erro muito grande: você deixar de publicar uma história de teor jornalístico só por conta de um acordo de cavalheiros entre os jornais”, sublinhou.

A correspondente Lúcia Guimarães, baseada em Nova York, relatou que um dos pontos mais discutidos do caso foi se a confissão da mentira anularia a credibilidade de Vargas como jornalista. “Ao que se saiba, nenhuma fonte entrevistada por ele o acusou de mentir enquanto repórter. O ombudsman do Washington Post disse que, embora não fosse um homem público, ele traiu a confiança do público ao mentir”. Lúcia contou que Vargas chegou a ser comparado à “infame” Janet Coock, repórter do mesmo jornal que inventou a história de um menino viciado em heroína. A publicação recebeu um Pulitzer pela matéria, mas acabou devolvendo o prêmio quando a farsa foi descoberta. “Se alguém chegar na redação do Post hoje e disser que todos os jornalistas que contrataram um imigrante ilegal para fazer faxina na sua casa, cortar grama ou cuidar dos seus filhos deve se retirar da redação, eu acho que no dia seguinte o jornal não sai”, disse.

Imigrante incômodo

De Londres, Sílio Boccanera analisou que o episódio vai além de um simples crime envolvendo um jornalista profissional e toca na sensível questão da imigração nos Estados Unidos. O caso é ainda mais incômodo, na avaliação de Boccanera, porque Jose António Vargas não exercia cargos tradicionalmente destinados a imigrantes ilegais, como os de empregados domésticos, trabalhadores do campo e motoristas. Para Boccanera, é hora de rever as leis que regem a imigração nos Estados Unidos: “A não ser pelos poucos apaches, comanches, navajos e originários de outras tribos nativas do solo que virou os Estados Unidos, todos os americanos descendem de quem, um dia, imigrou para lá”.

No debate ao vivo, Dines relembrou que, culturalmente, a sociedade norte-americana estima a verdade como um grande valor e castiga severamente quem comete o crime de falso testemunho. Neste caso, na avaliação de Dines, Vargas foi punido pela “mentira errada”, pois mentiu como cidadão e não como jornalista. Rosental Calmon Alves lembrou que os norte-americanos costumam avisar até mesmo aos turistas de que a falta da verdade pode ser o primeiro passo para um grande problema. O professor avaliou como “desastrosa” a política migratória dos Estados Unidos, onde cerca de 11 milhões de pessoas vivem de forma ilegal. “Existe uma campanha agora, principalmente da direita americana, contra ele [Vargas] levantando a suspeita de que, se ele mentiu enquanto imigrante sem documento, deve ter mentido nas matérias”, contou Rosental. Para o professor, elementos dessa corrente mais “raivosa” devem estar escrutinando as reportagens de Vargas em busca de mentiras.

Rosental comentou que, após deixar o Washington Post, Jose António Vargas engajou-se na luta em torno da imigração. Há dez anos, tem se fortalecido o movimento a favor da lei que legalizaria pessoas que chegaram aos Estados Unidos como crianças e se formaram em universidades ou serviram ao Exército. Um telespectador perguntou se Vargas assumiu sua condição de fora da lei para ajudar os imigrantes ou contou a verdade por receio de que este fato o prejudicasse no futuro. Na avaliação de Rosental, os dois fatores contribuíram para que o jornalista revelasse que vivia com documentação falsa. No artigo publicado no New York Times, ao mesmo tempo em que fica clara a agonia de Vargas, o repórter relata que apenas em 2016 expiraria a sua carteira de motorista falsa.

Jornalista vs. ativista

“Do ponto de vista estritamente legal, ele estava bem por mais cinco anos, mas eu acho que existe também este componente político. Tanto é assim que ele virou um militante da causa. E ele diz que foi motivado ao ver os rapazes que estavam caminhando de Miami para Washington”, disse Rosental. Bernardo Kucinski sublinhou que jornalistas são ativistas. “Um jornalista que não tem uma visão de mundo, uma filosofia própria, que não tem idéias próprias, certamente nunca será um bom jornalista. Ele pode ser uma ‘máquina de escrever’. A questão central é ele, apesar de ter as suas convicções, não permitir que elas afetem a sua cobertura da veracidade dos fatos. Ele tem que ter honestidade intelectual para, inclusive, mudar as suas convicções conforme os fatos que ele vai relatar”, analisou.

Para Kucisnki, não há conflito no fato de Vargas, em algum momento da juventude, ter levantado a bandeira dos imigrantes ilegais porque está é uma causa dos direitos humanos básicos. O Washington Post, na visão de Kucinski, “perdeu a oportunidade” de publicar uma excelente matéria porque o texto de Vargas atendia a todos os requisitos do bom jornalismo. Era uma novidade, pertinente, de interesse público e um relato comovente e bem escrito. Kucinski contou que leu cuidadosamente o artigo em que o jornalista revela a mentira e destacou que Vargas pareceu viver um drama pessoal muito forte e estar perturbado com a sucessão de falcatruas e pequenas mentiras que inventou. “Havia ali um conflito muito grande que ele resolveu publicando o testemunho”, ponderou o jornalista. Vargas é uma “vítima das circunstâncias” que fez do jornalismo uma forma de se tornar aceito pela sociedade e pela elite americana.

Em diversas ocasiões, Jose António Vargas tentou regularizar sua situação nos Estados Unidos. Catanni destacou que a hipocrisia norte-americana faz com que um jovem imigrante ilegal que serviu ao Exército possa se regularizar e um ganhador do Pulitzer, não. “A imigração ilegal é um problema quente. Até porque, a gente sabe o quão difícil é se regularizar nos Estados Unidos. E o Vargas trouxe à tona este problema. Eu acho que deveria ser o contrário. Ele deveria ter um mérito grande em vez de correr o risco de ser expulso”, avaliou o correspondente.

A verdade absoluta

Roberto Catanni chamou a atenção para o fato de que Jose António Vargas não foi demitido do jornal. No relato, ele afirma ter deixado a publicação por decisão própria após acertar a saída com um dos diretores do Post, seu mentor. “É uma escolha dele”, disse Catanni. Jose António Vargas, em sua opinião, é um bom jornalista: “Eu acho muito interessante o fato de que ele tenha sido chamado pela Arianna Huffington [criadora do Huffington Post], que é, hoje em dia, provavelmente, o personagem mais importante na mídia americana. Então, é uma pessoa que tem, sem dúvida, grandes méritos. A Huffington o chamou para ser editor de Tecnologia e Informação, um aspecto extremamente atual, pujante, na mídia. Eu acho que ele vai assumir este papel de ativista para voltar à imprensa depois”.

O correspondente relatou que, na Europa, a verdade absoluta é encarada como um mito. “A gente tem a tendência de observar isso como uma ingenuidade. É claro que a verdade absoluta não existe no jornalismo nem em nada que é humano”, analisou. Por isto, é improvável que, no Velho Mundo, um caso como o de Vargas possa levantar um debate tão intenso como nos Estados Unidos. Rosental Calmon Alves contou que há uma mudança em curso em torno desta questão no país. “A gente ouve muito dizer que ‘a nova objetividade é a transparência’”. A “ingenuidade” de acreditar na completa objetividade está diminuindo. “Hoje, o que as pessoas querem é a transparência, mostrar o que você é. E, obviamente, saber que você está em busca da verificação e da precisão”, disse Rosental.

 

***

O jornalista que sacrificou seu futuro

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 600, exibido em 5/7/2011

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Não fosse a surpreendente reviravolta do caso DSK, a mídia americana estaria amargando outro vexame: o embargo do Washington Post a uma matéria produzida por um repórter que todos acreditavam ser americano mas é filipino.

O repórter Jose Antonio Vargas estava preparando uma grande matéria sobre as condições em que vivem os imigrantes ilegais nos Estados Unidos e decidiu levar o assunto às ultimas consequências, mesmo que ele fosse o único a pagar por isso: revelou que não nasceu em território americano, veio com os avós quando era criança, ao contrário do que todos supunham. Inclusive seus superiores.

Jose Antonio mentiu como cidadão mas não mentiu como jornalista. E vai pagar por isso, pode ser preso ou repatriado. Mas os editores não se comoveram: barraram a matéria e afastaram o profissional. O concorrente, o New York Times, não vacilou e publicou a reportagem na íntegra com o dramático desfecho.

Como na Segunda Guerra Mundial, o problema dos refugiados tornou-se um dos mais aflitivos em todo o mundo. Naquela época, um pacto de silêncio abafou a tragédia dos refugiados que, por falta de documentos, foram diretamente para os campos de concentração nazistas.

Hoje, na era da transparência, o grande jornal que desvendou a rede de mentiras do caso Watergate castigou o jornalista que, por amor à verdade, sacrificou o seu futuro.