As recentes oscilações nos mercados financeiros foram cobertas pela mídia financeira internacional de uma maneira surpreendentemente discreta e responsável. Mesmo perante o desabamento dos mercados de Xangai a Nova York, o ar de tranqüilidade dos comentaristas conseguiu transformar o dramatismo da avalanche de números vermelhos em um quadro menos alarmante quando visto sob o prisma de uma análise porcentual. É tudo uma questão de perspectiva, já que noticiar uma baixa de 3,5% em um dia no índice Dow Jones soa menos alarmante do que uma queda de 400 pontos – apesar de representarem a mesma coisa.
Com a eventual estabilização da crise, tudo leva a crer que a mensagem subliminal da mídia partirá da autocongratulação pelo trabalho bem-feito para a realização de que a vida continua. Mas está aí o problema maior: a volta à rotina sem uma admissão de mea-culpa pela responsabilidade da imprensa no frenesi especulativo que tomou conta dos mercados nos últimos anos. Deve-se ressaltar não ser esta uma situação inusitada, muito pelo contrário: a sensação é de um total déjà vu em relação à explosão da bolha especulativa da internet no fim da década de 1990.
Uma das grandes responsáveis por esta situação é, possivelmente, a rede americana CNBC e suas versões européias e asiáticas. Parte do grupo NBC Universal, que por sua vez pertence ao conglomerado General Electric, a CNBC é a líder indiscutível entre as redes financeiras de televisão, com uma audiência diária mundial de mais de 340 milhões de aparelhos de TV. Mas o seu grande trunfo é a penetração não somente perante o batalhão de profissionais do mercado, mas também junto aos investidores amadores.
Lavar a alma
Se para os anunciantes esta combinação é irresistível, para a competição é fulminante. A CNN desistiu da luta e acabou cancelando o seu canal financeiro, o CNN Money, enquanto a Bloomberg se limita a um minúsculo segmento altamente especializado do mercado institucional. A única esperança de competição real vem do esperado lançamento do Fox Business Channel, associado ao canal de notícias Fox News do bilionário Rupert Murdoch.
O detalhe, porém, é que tanto Murdoch como Roger Ailes, seu principal comandante, já anunciaram para os quatro cantos do mundo que quando finalmente lançado, em 2008, o canal será menos crítico ainda do que a CNBC. A expressão em inglês usada pelos dois foi business friendly, que em tradução literal seria algo como ‘pró-negócios’. Ou seja, o princípio jornalístico do canal será simplesmente abrir suas câmeras e microfones para os chamados analistas financeiros promoverem a venda de seus peixes, sejam estes frescos ou podres.
O engraçado – e quase trágico – da questão é que esta já é fórmula empregada pela CNBC. A rede preenche grande parte de sua programação entrevistando analistas das grandes casas de investimentos de Wall Street, que por sua vez oferecem suas opiniões sobre os mercados em geral ou sobre ações de companhias, em particular. O problema é a pretensão de isenção por parte dos participantes desta farsa, já que o tal analista está lá simplesmente para vender um investimento de seu interesse ou, ao menos, do interesse de sua empresa. Por pura caridade ou mera vaidade é que não é.
Para lavar as mãos, e possivelmente a alma, a CNBC acompanha essas entrevistas com um gráfico listando possíveis áreas de conflito do analista e de sua empresa com o investimento em discussão. Mas isto não cobre de maneira alguma o potencial especulativo gerado pela manipulação prévia da compra e venda dos investimentos, em função da esperada repercussão gerada pelos minutos preciosos de exposição em uma rede de televisão.
Análise e investigação
Se a dependência da CNBC nesses analistas – e vice-versa – é por um lado uma perfeita relação simbiótica, por outro é jornalisticamente injustificável. Na realidade, o termo jornalismo no caso chega a ser incompatível com o quadro. O melhor seria descrever a prática como simples divulgação. Mesmo quando um de seus repórteres aparece com um pretenso furo jornalístico, geralmente não passa de uma notícia vazada propositalmente pelos bancos de investimentos.
E está aí a essência do dilema do jornalismo econômico praticado pela CNBC: não é realmente jornalismo. É, na verdade, uma mistura de puro colunismo social – disfarçado de fofoca financeira – com as maquinações de uma boa operação de relações públicas. O debate existente no Brasil sobre as diferenças entre profissionais de jornalismo e de relações públicas estaria finalmente resolvido, ao menos na visão do departamento pessoal da CNBC. Estão todos no mesmo barco, navegando mares tranqüilos, sem a menor preocupação em reportar a tempestade próxima.
Neste aspecto, o jornalismo econômico impresso dá de mil na competição televisiva. As páginas do Wall Street Journal nos Estados Unidos, ou do Financial Times na Inglaterra, estão literalmente transbordando com matérias analíticas e investigativas sobre as manipulações em Wall Street ou na City (como é conhecido o distrito financeiro em Londres).
Notícia e promoção
Mesmo os semanários seguem uma linha responsável similar – principalmente BusinessWeek nos Estados Unidos e The Economist, na Inglaterra –, devendo-se ressaltar porém que este último deixou há tempos de ser um veículo jornalístico puramente financeiro para abocanhar uma postura editorial mais abrangente. Infelizmente, para os leitores interessados especificamente em economia, um nome mais adequado para o The Economist de hoje deveria ser The Editorialist, devido à sua pretensão de pregar soluções definitivas para todas as crises do planeta.
Mas como a penetração da mídia impressa é uma fração mínima do veículo televisivo, o grande público segue sendo pego de surpresa. Tanto assim que até o início deste ano a CNBC raramente mencionava a crise com o crédito subprime – uma denominação para hipotecas imobiliárias de alto risco nos Estados Unidos. Outra expressão outrora ausente do vocabulário da rede é o carry trade, a prática de pegar empréstimos em moedas de juros baixos, em especial o iene japonês, para investir em moedas de juros altos, como o dólar americano, australiano e neozelandês, ou mesmo em mercados de altos risco como o brasileiro.
Para o espectador da CNBC, tudo isso era novidade. Para a própria CNBC, o importante era noticiar – ou melhor, promover – o fato de que o preço por ação do Google bateu em 500 dólares, ou maravilhar-se com os bônus milionários recebidos pelos seus companheiros de Wall Street.