Sempre apostando no otimismo e na crença de que o capitalismo é um estado de espírito próximo da exuberância e da euforia, a grande imprensa mundial atrelada à grande imprensa americana foi surpreendida, em 2008, pelas dimensões da crise que se armava no mercado hipotecário dos EUA.
Depois da quebra do Lehman Brothers, em 16 de setembro daquele ano, excetuadas algumas dramatizações episódicas, mídia e mercado continuaram a esfuziante ciranda, certos de que o desastre seria logo superado. Não foi. Ao contrário, agravou-se. Globaliza-se a cada dia que passa. Candidata-se a e converter em novo capítulo da História.
Nas semanas que antecederam o deadline de 2 de agosto, quando o Congresso deveria autorizar o aumento do teto da dívida pública dos EUA, o noticiário confinou-se às páginas e cadernos econômicos: foi um erro. O impasse era ideológico e sendo assim deveria ter sido acompanhado nos espaços e por especialistas em política. Isso só veio acontecer agora, quando até mesmo as agências de rating começam a ser questionadas e avaliadas como peças do tabuleiro político.
Caráter cósmico
Quem apostava num confronto sangrento e no enfraquecimento do governo Barack Obama não eram os seus legítimos adversários, os republicanos, mas uma falange de fanáticos que nada entendem de economia e sequer podem ser considerados conservadores. Opor-se à intervenção do Estado não é convicção libertária, pode ser evidência autoritária.
O Tea Party quer abolir tudo o que representa o bem-estar produzido pelo Estado. Trata-se de um anarquismo de direita, individualista e antissocial, impregnado de messianismo religioso, sem qualquer compromisso com a República, a União e o Estado de Direito.
Este breve retrospecto não significa que a atual débâcle tenha sido provocada pela imprensa. Significa, sim, que a imprensa não soube cumprir o seu inalienável papel de fiscal. Muito menos de sentinela. A instituição que ao longo de quatro séculos conseguiu preparar a humanidade para enfrentar todos os desafios, no auge da sua força vacilou e fracassou.
A imprensa foi arrogante ao achar que a queda do Muro de Berlim era a prova da infalibilidade daquele capitalismo vitorioso e abdicou de verificar suas anomalias e disfunções. Duas décadas depois, por conta dessas mesmas anomalias e disfunções – agora acrescidas de uma fadiga estrutural – temos uma imprensa arfando, sem fôlego, resignada com o seu próximo fim.
Os cadernos de economia foram criados e são dirigidos para agradar ao seu leitorado: empresários. Uma imprensa emasculada, em crise de identidade, não tem fibra – portanto não tem competência para ligar os alarmes e, eventualmente, incomodar seus fieis usuários e clientes. Prefere se auto-enganar.
E enganá-los. As sucessivas bolhas que envolveram a economia ocidental a partir de meados dos anos 1990 foram cobertas de forma descuidada, aleatória, sempre minimizadas. Para agradar leitores e anunciantes, sem pensar nas conseqüências mediatas. O jornalismo, sempre identificado com bravura, converteu-se em complacência.
Foi esta complacência míope, acovardada diante de uma imprecisa divindade chamada Mercado, que levou muitos colunistas, consultores e editores de economia a depreciar os perigos embutidos nas idéias, métodos e estrutura do Tea Party.
Na imprensa brasileira houve momentos em que a falange liderada por Sarah Palin passou a simbolizar a pureza do capitalismo. Não se lia The Economist nem o Financial Times que, embora conservadores, conseguiam enxergar o caráter anticapitalista desta subversão política.
A rigorosa segmentação do noticiário imposta a partir dos jornalões brasileiros não permitiu que uma sucessão de fatos de natureza econômica fossem analisados por cabeças políticas. E vice-versa. O simplismo que norteou a cadernização dos nossos diários tirou do nosso jornalismo seu caráter cósmico (no Jornal do Brasil dos anos 1960 e 70 um sistema de remissões conduzia o leitor de uma seção à outra).
Míope, vulgar
A gravidade da situação mundial transcende à segmentação do noticiário exigida pelos marqueteiros e publicitários. As quedas das bolsas em todo o mundo não podem ser desvinculadas dos acampamentos dos indignados que nas grandes metrópoles questionam governos insensíveis, burros, oportunistas.
Quando no século 16 a imprensa começou a tornar-se uma instituição, o seu símbolo era Mercúrio, o deus romano equivalente ao grego Hermes – representação do viajante, do mensageiro eloqüente, rápido, agente de intercâmbios. O comércio está associado a lucro, mas também a intercâmbio, trocas. Não foi por acaso que a partir daquele momento criaram-se na Europa e América, jornais chamados “Mercúrio”. Restaram poucos, um deles no Chile.
Mercúrio está aposentado. Vencido por uma divindade rasteira, míope, vulgar e canibalesca chamada Mercado. Quem está pagando pela troca é a imprensa.