Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Mídia alimenta imaginário da violência

O professor de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Andrelino Campos vê na atuação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) fluminenses não apenas um instrumento de combate à violência, mas também de reordenamento do solo urbano. E lamenta que o foco da mídia se concentre na questão do tráfico de drogas e suas consequências, porque a mídia robustece assim o imaginário da violência, socialmente tão importante quanto a violência propriamente dita.

Andrelino Campos é autor do livro Do Quilombo à Favela – A Produção do ‘Espaço Criminalizado’ no Rio de Janeiro, publicado em 2005. Ele dá como exemplo de imaginário de violência inflado o Jardim Catarina, considerado um dos bairros mais violentos do município de São Gonçalo, no Grande Rio. ‘Alguns pontos são destacados, ganham a atenção da imprensa, e qualquer evento passa a ser visto como tributário do tráfico. Na verdade, só uma parte da violência é decorrente do tráfico de drogas. Quanto se começa a mostrar muito determinada coisa, podemos ter certeza de que outras coisas, muito relevantes, ficarão escondidas’, desconfia.

E exemplifica:

‘A cocaína faz parte do ambiente no Rio de Janeiro, mas não é um ponto central na favela. Existem vários outros fatores geradores de violência. A violência na escola, por exemplo, tem sido noticiada. O fato é que até algum tempo atrás as famílias tinham maior controle sobre as crianças. Hoje, as crianças chegam da escola e ficam sozinhas. Crescem sem controle nenhum. E, pior, muitos chegam à adolescência e à idade adulta sem qualquer tipo de formação.’

Fora de foco

Na lista de fatos ou fenômenos que não são devidamente percebidos porque o foco da mídia está muito voltado para o ‘combate’ ao tráfico, Campos cita uma forma de corrupção associada ao Bolsa Família: ‘Há crianças que não frequentam a escola, mas os pais corrompem diretores para evitar que isso chegue ao conhecimento de quem é responsável por fiscalizar o cumprimento dos compromissos que habilitam ao benefício’.

A degradação de padrões morais se apresenta em várias modalidades. Segundo Campos, em São Gonçalo algumas famílias descobriram como ganhar dinheiro de professores. ‘Ameaçam ir ao Ministério Público ou a uma delegacia de polícia denunciar o professor por agressão ou assédio contra aluno. Cobram do professor, cujo salário, dando aula em duas ou três escolas, está na casa dos R$ 2 mil, R$ 500 para não fazer isso. Em alguns casos, o professor acaba preso.’

A questão do ensino, em si, também não merece da mídia a atenção necessária, diz o professor da Uerj:

‘Os professores são recém-formados, nas escolas se colocam vinte, trinta alunos em cubículos. As escolas acabam servindo para muitas outras coisas que não a educação: comer, dormir, jogar bola. Servem até para ensinar. Não é de estranhar que haja tanta violência nelas.’

Escola é síntese da sociedade

‘A escola está violenta, mas ela é uma síntese da sociedade’, diz o professor. ‘Recebe pessoas que vêm da sociedade e as devolve para ela. Como se sabe, em muitas escolas os alunos marcam sua filiação a uma das organizações criminosas do Rio pela escolha de um boné de determinada cor. Os garotos assumem uma cor, sem mesmo saber por quê.’

Não estaria havendo uma deficiência nas pautas da imprensa? Para Campos, não: ‘A mídia é direcionada. Tem interesse em dizer algumas coisas e não outras. Dirige a cobertura para a violência e a ação da polícia’.

‘A violência tem muito do imaginário’, afirma o professor. ‘As pessoas passam a enxergar as coisas a partir desse discurso. Quem vive no lugar apontado como violento reconhece o problema, mas não com a intensidade que lhe é atribuída. Para eu tornar um lugar violento, basta colocá-lo na mídia. O imaginário da violência potencializa os fatos.’

Como assim?

‘Se, quando ocorre um evento violento, ele é noticiado e depois o caso e o local saem do noticiário, não existe a potencialização. Mas em alguns casos, sobretudo quando acontece algo muito violento, um lugar é associado com a violência durante um longo período. Como no caso do assassinato do menino João Hélio [Fernandes Vieites, nascido em 2000; durante assalto ao carro da mãe em Oswaldo Cruz, Zona Norte, em 2007, ficou preso pelo cinco de segurança do lado de fora e foi arrastado por centenas de metros quando os ladrões levaram o carro]. Se a cobertura se prolonga, sempre haverá alguém que leia o caso como novo. O jornal administra o assunto em doses homeopáticas, até que ele se exaura completamente, ou melhor, seja cortado por outro evento. O jornal faz, na dimensão do tempo, uma conexão do local com eventos violentos que não corresponde à vida real.’

Segundo Campos, a cidade toda é pontilhada de eventos, mas o tratamento dado na mídia é seletivo. ‘O assassinato de Artur Sendas [2008], um empresário importante’, exemplifica, ‘ocorreu em Ipanema. Mas Ipanema não perdurou no noticiário como lugar de violência. Há outras coisas para se falar de Ipanema, coisas positivas. O assunto só retornou à mídia quando houve o julgamento do assassino.’

Outra faceta da dimensão temporal é a ligação que se faz entre fatos ocorridos em momentos distintos. O professor da Uerj aponta:

‘A mídia falada, por exemplo, quando relata um fato novo, sempre vai buscar referência em algum fato antigo. Há uma invasão policial no Morro dos Macacos, virá como referência a derrubada de um helicóptero da polícia ocorrida lá, fato gravíssimo, não há dúvida, mas sem conexão com a invasão que está sendo noticiada.’

Cidade e território

O professor faz uma distinção entre cidade e território. ‘Copacabana, Ipanema, Madureira são parte da cidade. A Serrinha, o Vidigal, a Cidade de Deus são territórios. Território é um recorte espacial onde pré-existe uma hierarquia e o conflito é constante.’ Há fatos violentos na cidade, mas a polícia não invade os lugares da cidade. ‘Quem vive em favela pode ser invadido a qualquer momento, porque território é um lugar de luta’, constata.

A associação entre a dimensão espacial e o imaginário opera porque ‘ninguém vive cem por cento da cidade. Cada um conhece alguns bairros e algumas pessoas’, diz Campos. ‘Como a capacidade de circular é extremamente restrita, cada pessoa conhece os lugares onde estuda ou trabalha, mora, frequenta bares, se diverte etc. O resto vem do imaginário.’

A imagem que os habitantes têm da cidade é, portanto, fornecida pela mídia. Mais uma razão para o professor da Uerj condenar a atenção quase obsessiva dada à questão da segurança pública. Para exemplificar por que acha que deveriam ser enfocadas também outras questões, como a do reordenamento urbano, ele menciona um texto seu de 1997 no qual mostrou que, em aparente paradoxo, as áreas envolvidas no Favela-Bairro, programa criado em 1994 pelo então prefeito César Maia, começaram, depois de uma valorização inicial, a perder valor, porque os investimentos nesses lugares foram pontuais e não contínuos.’Como a violência foi exacerbada nos últimos dez a quinze anos, houve uma depreciação do solo urbano nesses locais’, aponta Campos.

O que Copa e Olimpíada podem – ou não – trazer

Com as intervenções atuais ‒ presença de UPPs e obras de urbanização, teleféricos, etc. haverá, como no caso do Favela-Bairro, valorização no primeiro momento. E o desdobramento do processo poderá ser bem diferente.

‘Se for regularizada a posse dos lotes, o mercado imobiliário poderá comprar terras e fazer seus próprios investimentos’, diz Campos. ‘Estamos no limiar de dois projetos imensos: a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016. Imagine-se o que, nessa situação muito especial, poderá ser feito numa área como o Vidigal, por exemplo.’

Para o professor, o Rio tem a possibilidade de ser visto como modelo, a exemplo do que aconteceu com Barcelona depois da Olimpíada de 1992. ‘A partir de 2014-2016, o que se fizer aqui pode se irradiar para todo o país e para o mundo’, afirma.

Apesar de levantar essa hipótese, ele é cético quanto à possibilidade de que a realização dos dois grandes eventos se traduza em melhorias reais para a população do Rio de Janeiro. ‘O Pan-Americano veio, acabou, a cidade permaneceu a mesma. Acredito que com a Olimpíada a imagem poderá se modificar, algumas estratégias de sobrevivência serão criadas, mas isso não vai alterar muito a vida das pessoas. Continuará havendo assaltos, com mais ou menos violência, mortes. As favelas e outros lugares subalternos continuarão sendo territórios, onde viver é uma arte e morrer violentamente é consequência do contexto.’