Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia e a planta tenra

Ao tomar posse como governador da Bahia, em 1947, Octávio Mangabeira, o velho cacique udenista, definiu a democracia brasileira ‘como uma plantinha tenra que precisa ser regada todo dia’. A divulgação, na semana passada, da pesquisa realizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) não deixa dúvidas: quase seis décadas depois do discurso do parlamentar baiano, poucos são os vocacionados para botânica ou jardinagem em nosso país.

Dos 18 países latino-americanos pesquisados, o Brasil ficou em 15º lugar quanto à adesão popular à democracia. O estudo registra ainda que o Brasil é o país com maior grau de democracia eleitoral. Estaríamos diante de um paradoxo? Uma contradição capaz de colocar sob suspeição o rigor metodológico empregado? Não. Para o bem e para o mal, estamos na presença de um alerta. E a imprensa deveria acionar suas sirenes.

Depois de 20 anos de regime militar, vivemos um arremedo de democracia que não ousou ir além da restituição dos mecanismos representativos do sistema político e do ordenamento jurídico. Uma institucionalidade que nunca se propôs a arranhar, ainda que levemente, os interesses das elites dominantes. Sejam os das que se encastelam no universo político conservador, sejam os das abrigadas na ampla rede que vai do latifúndio aos grupos empresariais mais expressivos.

Produtos de transição por alto, em mais uma ação intramuros da nossa permanente saga pré-republicana, os governos civis que sucederam os generais de plantão não elaboraram qualquer agenda de inclusão efetiva. Sob o tacão do receituário neoliberal, a ‘estabilidade democrática’ foi a consagração da não-política, do não-acontecimento, do não-devir. Ao terror de Estado sobreveio a ditadura do mercado. As abstrações econômicas, expressas em riscos e cotações de títulos públicos, se superpuseram às relações sociais concretas. O estadista sensato foi redefinido como sendo aquele que tranqüiliza o capital volátil e facilita o cálculo contábil. O pensamento único invocou sua atemporalidade, transmutou-se em ciência natural e transformou a política em apêndice ou – quem sabe? – ornamento. A mídia, em meio à tempestade, se arvorou em instância de representação da nova esfera pública.

Veleidades autárquicas

O resultado foi devastador: 52 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, taxas recordes de desemprego e 30 mil vítimas de assassinato por ano. O número de menores entre 10 e 17 anos que trabalham na rua atinge, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), um contingente de 263 mil crianças, em 2002. E dos adultos ainda empregados, apenas 45,2% contribuem para a Previdência. Aumenta a concentração de renda e acentuam-se as desigualdades regionais. Sobreviver tendo entre 15 e 24 anos virou proeza de quem sabe se esgueirar bem em vielas e condomínios.

Diante desse quadro, presenciamos, por parte da grande imprensa, uma demonização sistemática dos movimentos sociais que pretendem inscrever como sujeitos de direito, categorias até então à margem da história. Apresentados como disfunções, expressões patológicas, sintomas anômicos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST), a União dos Movimentos de Moradia (UMM) e a Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag) produzem confrontos toda vez que fazem agenciamentos de demandas dos excluídos.

Como a cultura política de uma formação social muito depende das representações simbólicas que a mídia faz dos atores e dos grupos políticos, o recorte resultante reproduz o que já sabemos: ao povo, quando pretende ser protagonista da própria história, é pespegado o rótulo de baderneiro. O banditismo tem mais glamour.

Assim, tratados como caso de polícia, são apresentados como pontos de desestabilização, agentes que põem em risco o ‘ordenamento democrático do Estado de Direito’. Logo eles, que tanto lutam por seu fortalecimento. Se observarmos as dinâmicas dos movimentos organizados, nenhum deles sinaliza para demandas que apontem para rupturas com os marcos da legalidade vigente. Grosso modo, pedem à burguesia que perca sua atávica subalternidade ao capital externo e instaure reformas que viabilizem um capitalismo nacional, sem veleidades autárquicas.Conhecem, e muito bem, a dinâmica transnacional da economia contemporânea para propor as bravatas que a imprensa lhes atribui.

Sinal de alerta

Enquanto prosperar a cultura da intolerância classista, não restará ao homem comum outro gesto que não seja o da persignação ao ouvir a palavras Direito e Estado democrático. Legítimo será indagar pelo contraponto de suas demandas: se os movimentos sociais, que agenciam novos espaços ético-políticos, são um risco à democracia, quais serão os pilares de tal forma de governo? O superávit primário visto como um fim em si mesmo? As metas de inflação? O agrobusiness que ignora o mercado interno? Com a palavra , editores e editoras do pensamento único.

Se a plantinha tenra insiste em nascer nos grotões do latifúndio improdutivo, que as elites a reguem com carinho. Porque ele, sujeito sem direitos, excluído do jogo político, alvo móvel da bala que serpenteia favelas e palafitas, tem que cuidar da parte que lhe cabe nesse jogo de soma zero que alguns chamam de vida.

Segundo o estudo do PNUD, 54,7% dos cidadãos latino-americanos aceitariam um governo autoritário se ele pudesse resolver seus problemas econômicos. E 58,1% acham que o presidente pode ignorar as leis.

O alerta está feito. O encaminhamento político que será dado a ele é que definirá nossa situação futura.

Temos avançado ou vivido o eterno retorno?

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Professor titular de Sociologia da Facha, Rio