A Constituição de 1988 não deixa dúvidas: o Estado brasileiro é laico. O artigo 19 da Carta Magna prevê que o Estado não deve ‘estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público’. No entanto, na prática, a isonomia entre as confissões religiosas nem sempre é respeitada. Crucifixos expostos em prédios públicos e a presença de feriados religiosos no calendário civil são exemplos do |
legislação. Nos canais de radiodifusão, que são concessões públicas, o panorama
não é diferente. Além das emissoras de rádio e tevê administradas por grupos
religiosos, muitas vezes através de ‘laranjas’, há ainda a venda de horário da
programação de canais privados para igrejas e seitas.
Após oito meses de discussões e consultas à sociedade, o Conselho Curador da
Empresa Brasil de Comunicação (EBC) decidiu na reunião realizada em 22/03
suspender a transmissão dos três programas religiosos veiculados atualmente pela
TV Brasil, um canal de televisão público. Dentro de seis meses, deixarão de ir
ao ar ‘Palavras de Vida’ e ‘Santa Missa’, ligados à Igreja Católica, e
‘Reencontros’, de orientação protestante. Os programas são exibidos há mais de
duas décadas, têm telespectadores fiéis, e chegaram a mobilizar protestos contra
a determinação do conselho. A intenção do conselho é preparar uma nova faixa de
programas de cunho religioso que aposte na pluralidade de crenças. O
Observatório da Imprensa exibido ao vivo na última terça-feira (26/04)
pela TV Brasil abriu espaço para a polêmica sobre a presença de programas
religiosos na grade de emissoras públicas.
Alberto Dines recebeu no estúdio três especialistas no assunto. No Rio de
Janeiro, o convidado foi o professor Luiz Antonio da Cunha, do Núcleo de Estudos
de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O professor coordena o
‘Observatório da Laicidade do Estado’ e é membro do Conselho Nacional de
Educação. Em São Paulo, o programa contou com as presenças de Roseli Fischmann e
Edin Sued Abumanssur. Fischmann é doutora em Filosofia e História da Educação
pela Universidade de São Paulo (USP). Estuda a tolerância e o combate à
discriminação, em particular religiosa e o racismo, sendo pesquisadora do CNPq
para o tema do Estado Laico. Edin Sued Abumanssur, doutor em Ciências Sociais, é
professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC de São
Paulo. Desenvolve pesquisas sobre o fenômeno pentecostal no Brasil e,
atualmente, sobre o crescimento do pentecostalismo em contextos de
violência.
Espaço plural
Em editorial, Dines destacou que o Estado laico deve oferecer oportunidades a
todas as crenças e ‘inclusive à descrença’. ‘O Estado democrático de direito é
obrigatoriamente isonômico. Todos os cidadãos têm os mesmos direitos, não há
privilégios. As convicções das maiorias não podem ser impostas às minorias. O
Estado secular e laico não é anti-religioso, é neutro, não intervém na esfera
espiritual, necessariamente privada. Se o fizer será um Estado teocrático e
teocracia não combina com democracia’, alertou. A decisão do conselho, na
avaliação do jornalista, é emblemática porque é fruto de um processo democrático
interno para democratizar as instituições do país. Dines defendeu ainda que os
canais de radiodifusão adotem organismos para supervisionar padrões de qualidade
e adequar a programação à Constituição.
Na reportagem exibida pelo Observatório, o ouvidor da EBC, Laurindo
Leal Filho, contou que, há dois anos, quando a ouvidoria foi instalada, parte
dos telespectadores questionou a exibição dos três programas religiosos
veiculados pela emissora alegando que um canal público não deveria privilegiar
nenhuma confissão em particular. Daniel Aarão dos Reis Filho, integrante do
conselho curador, explicou que o órgão não é contra a presença da religião na TV
Brasil e nas rádios que compõem a EBC, mas irá conferir um caráter mais
abrangente ao espaço destinado à vivência religiosa.
‘O que nos chamava a atenção é que os programas atualmente existentes eram de
duas religiões específicas e só delas. Nós consideramos que é um traço cultural
muito importante da sociedade brasileira o fato dela ser religiosa. Mas acontece
que há muitas religiões no Brasil’, disse Daniel Aarão. O integrante do conselho
ponderou que tanto a igreja católica quanto a evangélica são proprietárias de
canais de rádio e televisão que levam a sua mensagem aos fiéis; por isso, a
exibição dos três programas na grade da TV Brasil pareceu uma ‘anomalia’ aos
olhos do órgão consultivo.
A corrida pela mídia
Para o jornalista Eugênio Bucci, a televisão no Brasil, historicamente, tem
sido veículo de propaganda e proselitismo de uma igreja em detrimento de outras.
‘Se a televisão pública é um canal público, portanto pertencente a todos os
cidadãos em igualdade de condições, nós temos aí uma distorção’, sublinhou. Na
avaliação do jornalista, a religião pode e deve aparecer normalmente na
programação, desde que haja um respeito entre as diversas profissões de fé. O
professor Paulo Fernando, decano em Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), vê com naturalidade a
presença da religião no espaço público. ‘Com a modernidade e a secularização,
tendeu-se a buscar confinar a religião no espaço privado, mas a religião é uma
dimensão importante da vida humana, não só da vida privada, mas também na sua
dimensão pública’.
A jornalista Elvira Lobato, repórter especial da Folha de S.Paulo que
estuda o fenômeno da radiodifusão no Brasil, explicou que desde o início dos
anos 1990 as igrejas vêm ocupando um espaço cada vez maior na mídia, o que causa
uma importante distorção no mercado. Naquele período, a Igreja Universal do
Reino de Deus começou a montar a atual Rede Record e logo provocou uma forte
reação das demais religiões, que passaram a buscar um maior espaço na
comunicação.
‘Isto cria também uma situação desigual porque as pequenas igrejas não têm
acesso [à mídia] ou então ‘correm’ para alugar um horário na grade de
programação das emissoras. A distorção maior que eu vejo é que, de um lado,
encarece artificialmente essas concessões e, de outro, aumenta um problema que
já era sabido que é o uso de laranjas na radiodifusão’, explicou Elvira. Um
outro problema detectado pela jornalista é que, ao arrendar o horário para
igrejas, os canais deixam de cumprir uma série de exigências constitucionais,
como respeitar os percentuais para programação regional e para programas
jornalísticos, por exemplo.
Como conciliar todas as correntes?
No debate ao vivo, Roseli Fischmann destacou que todos os cidadãos devem
sentir-se representados na programação das tevês públicas. A pesquisadora chamou
a atenção para o fato de que a igreja católica tem uma estrutura centralizada,
mas outras religiões, como a evangélica, são mais plurais, e ponderou que este
fator pode impedir que todas as correntes religiosas sejam contempladas com
espaço nos canais públicos. Assim, grupos religiosos podem acabar se sentindo
‘menosprezados’ pelo Estado caso não vejam representados na TV Brasil ‘seus
modos de crer ou não crer’. Há um ciclo vicioso envolvendo poder, mídia e
religião, na avaliação da filósofa. ‘Se tem um político de uma determinada
denominação religiosa no Congresso, isso ajuda para conseguir a concessão e, ao
mesmo tempo, depois ajuda para que ele se eleja’, explicou.
Muitas vezes, as tevês comerciais mais antigas ‘assumiram’ a postura da
religião católica, por ser a orientação majoritária no Brasil, com transmissão
de eventos e veiculação de noticiário voltado para esta confissão. Na avaliação
de Roseli Fischmann, esta atitude, ao longo do tempo, acabou tornando as demais
crenças ‘invisíveis’. Outro ponto levantado por ela foi a discriminação
promovida por programas religiosos na tevê. ‘Por questões doutrinárias, fica
facilitada a transmissão de preconceitos e de conteúdos discriminatórios. Isso
tem, inclusive, gerado algumas ações na Justiça’, diz. Há ainda a ‘demonização’
de grupos religiosos de matriz africana e outras minorias não-cristãs. A
situação também se repete nos templos religiosos, mas na tevê o fato se torna
público e é mais grave.
Dentro da realidade brasileira, para Edin Sued Abumanssur, não é possível
falar em religião no singular. Mesmo a igreja católica é plural. Atualmente,
existem cinco emissoras católicas de diferentes segmentos e cada canal não se
sente refletido na programação exibida pelos concorrentes. ‘Com a aproximação
entre tevê paga e internet é cada vez mais possível que cada grupo organizado da
sociedade civil tenha o seu canal de expressão’, defendeu Abumanssur. Para o
professor, o Estado deve fazer concessões para sindicatos, igrejas e
universidades. ‘Até onde a gente pode pensar em democracia nas concessões se
também invadir uma outra seara que é caríssima aos defensores do Estado de
Direito que é a liberdade de expressão e a liberdade religiosa? Onde termina uma
coisa e começa a outra?’, questionou.
Pouco debate
Para o professor, a isonomia entre as religiões na mídia eletrônica é uma
questão tão importante – com implicações nos campos político e financeiro – que,
justamente por isso, deverá ficar circunscrita à decisão da EBC. O gesto de
fechar o espaço para as religiões na TV, na previsão de Abumanssur, deve se
confirmar como um fato isolado. E a questão sequer será discutida pelas empresas
privadas de comunicação: ‘Ninguém vai querer mexer nisso. É óbvio que esse tipo
de discussão não será feita por empresa privada. Vai ser feita por empresa
pública’. Abumanssur disse que o ganho que as emissoras privadas têm ao arrendar
horário para as diferentes confissões religiosas é ‘imenso’. Além disso, os
integrantes do Congresso Nacional que cuidam das outorgas dos canais de
radiodifusão são ao mesmo tempo proprietários de emissoras e, muitos deles,
pastores evangélicos.
Dines perguntou como o professor Luiz Antonio da Cunha vê a necessidade de
atender a diferentes grupos da sociedade com concessões de radiodifusão. ‘O
Estado faz concessões, mas é preciso que a sociedade controle. Isso é um elo que
está faltando enormemente no Brasil. Porque, na realidade, as emissoras de
televisão funcionam como instituições privadas em disputa, onde a busca é a da
acumulação de capital, da influência da política, da acumulação de poder e até
da utilização da religião como instrumento para esta acumulação’, criticou. Na
prática, o que existe no Brasil são ‘instituições materiais’ combatendo em busca
de uma maior influência na sociedade. ‘O que nós vemos é a religião ser usada
nas televisões como proselitismo’, disse. É preciso não deixar que o espaço
público seja usado como esfera de competição de grupos religiosos pelo exercício
de influência política.
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Editorial do OI na TV nº 590 – no ar em 26/04/2011
Alberto Dines
A tarefa de separar a Igreja do Estado começou quando se discutia nossa
primeira Constituição, em 1821, e ainda não se completou. Mas a TV Brasil como
emissora pública está oferecendo um sinal de que o debate se encaminha para um
feliz desfecho.
A EBC atendeu às manifestações dos telespectadores e ouvintes no tocante aos
programas religiosos. Percorreu todos os trâmites até a realização de uma
audiência pública e, no fim do processo, seu Conselho Curador recomendou a
supressão dos programas de proselitismo religioso que beneficiassem algumas
confissões apenas. Com isso, a EBC foi ao cerne da questão do laicismo: não se
trata de ser contra ou a favor das crenças religiosas, mas de oferecer
oportunidade a todas, inclusive à descrença.
O Estado democrático de direito é obrigatoriamente isonômico. Todos os
cidadãos têm os mesmos direitos, não há privilégios. As convicções das maiorias
não podem ser impostas às minorias.
O Estado secular e laico não é anti-religioso, é neutro, não intervém na
esfera espiritual, necessariamente privada. Se o fizer será um Estado teocrático
e teocracia não combina com democracia.
A decisão do Conselho Curador da EBC chama a atenção para a própria
existência deste orgão moderador. Sendo concessões públicas e, portanto,
espelhos da sociedade, todas as emissoras de rádio e TV, públicas ou privadas,
deveriam ter organismos capazes de supervisionar os seus padrões de qualidade e
adequar sua programação aos paradigmas estabelecidos pela Constituição.
Democracia é um sistema e também um processo que se constrói aos poucos, com
paciência e, sobretudo, com determinação. A decisão do Conselho Curador da EBC é
emblemática: resultou de um processo democrático interno e tem como objetivo
democratizar nossas instituições e nossa mentalidade. Em benefício de todos.
Indistintamente.