O presidente Lula desafiou um repórter na última sexta-feira (20/5): ‘Olha para minha cara para você ver se eu estou preocupado com isso [a CPI dos Correios]’.
O repórter era da Folha de S.Paulo e o jornal fez a festa no dia seguinte. Debaixo do título com a frase bombástica e literalmente inacreditável, o jornal mostrou uma foto de Lula, batida na sexta, de mão no queixo, boca fechada e olhar parado, como quem está aborrecido – ou melhor, preocupado.
A festa só não foi completa porque a legenda começa assim: ‘Presidente Lula discursa no Planalto…’ Mas isso é detalhe. O que interessa é se a imprensa se preocupou em dar ao leitor o que ele tem direito na cobertura do escândalo dos Correios, dos seus desdobramentos e da questão mais ampla da corrupção na área pública.
A preocupação se justifica especialmente pelo fato, já assinalado neste Observatório pelo jornalista Alberto Dines, de que a apuração própria foi a grande ausente da matéria com que tudo começou – a reprodução, na Veja da semana passada, dos trechos mais cabeludos de um vídeo no qual o chefe de um importante departamento dos Correios, Maurício Marinho, aparece embolsando uma propina de 3 mil reais (como o Jornal Nacional mostraria no mesmo sábado em que a revista foi para as bancas) e incriminando o deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, como mentor da gangue dos três que ‘trabalhamos fechado’ na estatal.
O que os mais influentes jornais brasileiros – além da Folha, O Estado de S.Paulo e O Globo – e a própria Veja fizeram a partir daí que não fosse jornalismo declaratório, com ou sem fontes identificadas?
Pergunta sem resposta
Na quarta-feira (18/5), de posse do vídeo inteiro que Jefferson distribuíra a rodo na véspera, como parte da tentativa de provar a sua inocência, a Folha divulgou que em dado momento da gravação Marinho diz que a empresa de informática Novadata, de propriedade de Mauro Dutra, amigo do presidente e fornecedor de computadores ao Planalto, fez ‘acertos’ para reajustar o valor de um contrato com os Correios e tentar vencer uma licitação.
De novo, apuração própria zero, a não ser para as matérias de contexto da história principal, com base em informações da assessoria da Novadata (que desmente Marinho) e em números de domínio público sobre os negócios da empresa com a administração federal.
O Estado ecoou a Folha com um dia de atraso (e trouxe uma entrevista com Dutra, na qual ele diz que ganhou muito mais no governo Fernando Henrique do que no atual). Em compensação, teve a iniciativa de colocar em cena naquela quinta-feira outra estatal, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) que movimenta 300 milhões de dólares por ano no exterior.
A matéria não chega a apontar maracutaias, mas informa que Jefferson teve ‘participação’ na nomeação de 4 dos 5 diretores e do novo presidente da empresa, Luiz Appolonio Neto. Informa também que ninguém fiscaliza o IRB e a ninguém os seus dirigentes têm a obrigação de prestar contas. O assunto iria render.
Já a primeira tentativa de rastrear o vídeo estrelado por Marinho apareceu na Folha de sexta, citando investigação da Abin. E aí se ficou sabendo que a agência já estava de olho no funcionário antes de ele aparecer na Veja. Nada de parar as máquinas.
Mais longe foi o Estado, no sábado, com a matéria ‘Grampo que originou crise foi feito por ex-agente do SNI’ que reconstitui o que teria sido uma tentativa frustrada de um certo capitão da reserva da PM mineira, José Santos Fortuna Neves – ‘ex-araponga do SNI, filiado ao PMDB e amigo do líder do partido no Senado, Ney Suassuna’ – de revalidar uma licitação de 34 milhões de reais para a venda de computadores aos Correios.
Neves, lê-se na reportagem, tentou chantagear Jefferson (o que confere com o que este tinha dito da tribuna, ao se defender). Como não deu certo, se lê também, foi parar na Veja a fita que ‘já circulava em todas as instâncias de investigação do governo federal havia pelo menos três semanas’. Lula ficou sabendo dela pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Mas nem o Estado nem a concorrência foram atrás da resposta à pergunta óbvia: por que o governo esperou a Veja falar da fita (e o Jornal Nacional mostrar o seu melhor momento) para mandar abrir inquéritos e sindicâncias, além de afastar o superior de Marinho nos Correios?
Mercadoria própria
No mesmo sábado (21/5), a nova edição da Veja trazia um rato na capa, para ilustrar a corrupção que, segundo a revista, é ‘endêmica’ no país. Enveredando pelo IRB, noticiou, sem identificar a fonte, que Jefferson, por intermédio de um corretor de seguros seu amigo, que o texto nomeia, tinha pedido uma mesada de 400 mil reais ao antecessor de Appolonio na presidência do instituto, Lídio Duarte (indicado, por sua vez, pelo antecessor de Jefferson na presidência do PTB, o falecido José Carlos Martinez). Segundo a Veja, Lídio se demitiu por não suportar a pressão do PTB.
O Estado também voltou ao IRB nesse dia, mas sem acusar sem provas. Citou Lídio como tendo dito que se recusou a dar emprego a afilhados de políticos a quem recebeu a pedido de Jefferson.
Lídio não mencionou 400 mil reais nem qualquer outra quantia. Disse que se demitiu, há dois meses, porque o ambiente na estatal ficou ruim depois das notas plantadas na imprensa, segundo as quais Jefferson pedira a sua cabeça.
O presidente do PTB não foi o único alvo em que a Veja atirou com balas sem marca. A revista atribuiu ao ministro da Casa Civil, José Dirceu, a seguinte declaração: ‘É impossível que uma CPI minimamente bem-feita não pegue o Delúbio [Soares, tesoureiro do PT] e o Silvinho [Sílvio Pereira, secretário-geral]’. A fonte da Veja seria ‘um aliado’ de Dirceu. O ministro disse que a revista cometeu ‘uma infâmia’.
Mas, no dia seguinte, garimpando um depoimento à Polícia Federal do lobista Francisco Honorato, em maio de 2004, o Estado informou que ele contou ter ouvido de um assessor do ministro Humberto Costa, da Saúde, Laerte de Arruda, que ele, Laerte teria autorização de Delúbio ‘para solicitar dinheiro das empresas farmacêuticas e intermediar interesses dessas empresas junto ao Ministério da Saúde’.
O Globo só no domingo trouxe mercadoria própria, de um ângulo esquecido pelos jornalões paulistas: o que a Polícia Federal têm feito na caça aos corruptos. Rendeu a manchete ‘PF investiga corrupção nos 26 estados e no DF’ e uma matéria de página inteira, mapeando as 45 operações que levaram à prisão de 819 pessoas (entre elas 290 servidores públicos) entre agosto de 2003 e maio de 2005.
Na segunda-feira (23/5), o colunista Nelson de Sá, da Folha, citou esses números dando a entender que o Globo os divulgou por uma boa razão: ‘Em suma, não precisa CPI’.
Problema grave
Assim como este leitor não sabe se é verdade que Jefferson pediu 400 mil reais a Lídio Duarte, como saiu na Veja, ou se Dirceu disse aquilo que a revista deu como fato positivo, tampouco sabe se a intenção da matéria do Globo era ajudar o governo na operação-abafa contra a investigação parlamentar.
Ela é valiosa por se distinguir do que a concorrência vinha publicando e porque, a ser verdade o que contém, leva água para o moinho da tese defendida por analistas independentes de que não foi a corrupção que aumentou: é o combate a ela que a faz parecer maior.
Essa é uma das tais questões impossíveis de subestimar sobre o papel da mídia para a formação das opiniões sobre a política brasileira.
Depois da eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara, com a sua conhecida promessa de aumentar os salários dos deputados; depois da sua malsucedida tentativa de aumentar os recursos para o custeio de suas atividades; depois da revelação de que Severino e perto de uma centena de seus colegas empregam parentes nos próprios gabinetes (ou nos dos outros); depois da notícia de que pelo menos 9 dos 32 integrantes da comissão de deputados que vai encarar o assunto também praticam o nepotismo; depois de o Jornal Nacional levar ao ar uma cena explícita de venalidade (Maurício Marinho literalmente embolsando um maço de notas); depois de o Fanástico, na noite seguinte, mostrar o governador de Rondônia sendo achacado por um grupo de deputados estaduais (numa fita que ele mesmo gravou às escondidas); depois, enfim, dos desmoralizantes esforços do governo para fazer abortar a CPI, a percepção popular dificilmente poderia não ser a de que a corrupção está em toda parte – ‘endêmica’, no adjetivo da Veja.
A mídia induz a população a achar que o problema número 1 do Brasil é a corrupção. Não é. Muito mais grave do que a corrupção, pelo alcance de suas conseqüências, é o incessante e crescente desmatamento da Amazônia. Isso para não falar da desigualdade social no país.
Desarranjo político
Cobrir corrupção é um monumental desafio para a imprensa em qualquer lugar do mundo, por motivos óbvios e por outros nem tanto. No Brasil, apurada a soma algébrica de acertos e erros, a imprensa mais ajudou do que atrapalhou o combate à rapina do dinheiro público.
Mas ela não pode se dar por satisfeita quando divulga evidências de maracutaias que terceiros fizeram cair no seu colo, ou ela mesma flagrou, nem quando divulga as tentativas de acobertamento das fraudes, ou de salvar a pele dos seus autores e cúmplices.
Esse é um lado da moeda. E já aqui a mídia tem a elementar obrigação de oferecer ‘informação precisa, denuncias documentadas e coberturas equilibradas’, como advertiu domingo o ombudsman da Folha, Marcelo Beraba [leia a íntegra do texto na rubrica Voz dos Ouvidores, nesta edição].
Nesses quesitos, os três grandes matutinos se saíram melhor em geral do que a maior semanal. A Veja os deixou para trás ao estampar uma denúncia documentada que recebeu de presente e cuja autenticidade não foi questionada.
Mas nem a Folha, nem o Globo, nem o Estado caíram no tabloidismo da revista com suas acusações sem provas contra Jefferson (no caso dos 400 mil reais) e Dirceu (no caso das referências a Delúbio e ‘Silvinho’).
Informações desse coturno precisam de respaldo muito mais sólido do que a palavra da Veja, uma publicação cuja credibilidade faz tempo que se tornou tema polêmico entre os jornalistas.
O outro lado da moeda é o imperativo de proporcionar ao público os meios de enxergar denúncias de corrupção e a luta contra ela numa perspectiva mais ampla do que a fornecida pelo noticiário do dia-a-dia.
No caso atual, será que foi dado ao leitor perceber o conturbado momento do jogo político em que a corrupção entrou em campo? Denúncias do gênero muito raramente são raios em céu azul. Mas o episódio dos Correios irrompeu quando o governo Lula parece ‘um peru bêbado em dia de Carnaval’, conforme a comparação, ao mesmo tempo grosseira e confusa, do ex-presidente Fernando Henrique.
Desde a eleição de Severino e do fracasso da reforma ministerial – uma coisa tendo tudo a ver com a outra –, o governo está numa roda-viva de problemas que o deixam claramente desnorteado. Mas o noticiário não conseguiu concatenar, para a compreensão do leitor, o propinódromo em funcionamento nos Correios (e, quem sabe, no IRB) e as suas possíveis repercussões políticas, de um lado, e, de outro, ‘a desarmonia crescente entre Executivo e Legislativo, e as dificuldades, também crescentes, para governar com uma coalizão de partidos, harmonizando os seus interesses’, no bem-apanhado resumo da situação feito pela colunista Tereza Cruvinel, do Globo, na edição de 15/5.
Não que o desarranjo político tenha contribuído necessariamente para a denúncia. Mas os efeitos desta não podem ser dissociados daquela realidade. Tampouco se pode dissociar a capacidade do governo de ‘requalificar’ a base aliada, como disse domingo o presidente do PT, José Genoino, da radiatividade política liberada pelo escândalo.
Baliza do leitor
A imprensa trata das atribulações políticas do Planalto e trata da corrupção flagrada. Mas não tem sido capaz de, ou não se preocupou em, juntar as peças para desembaçar a visão do público. Nem de falar da corrupção sem cair no moralismo fácil ou se limitar às fáceis demandas por apurações exaustivas com a devida identificação e punição dos culpados.
O Estado, o Globo e a Folha buscaram livrar-se do problema com a receita clássica – entrevistas com especialistas. O Estado jogou pingue-pongue com a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida e com o historiador José Murilo de Carvalho. O Globo, com o filósofo Roberto Romano e com a socióloga Flávia Schilling. A Folha, com o senador, ex-ministro e ex-reitor de universidade Cristovam Buarque.
Todos disseram coisas que fazem pensar, assim como os sucessivos editoriais do Estado na semana passada, o do Globo no domingo, o artigo de Miriam Leitão no mesmo dia e jornal e o artigo do cientista político Fernando Luiz Abrucio, no Valor segunda-feira (23/5).
Mas, entre a cobertura do varejo e as entrevistas (ou comentários) de gente do ramo, ficou faltando o que os americanos chamam news analysis – a reportagem interpretativa, que combina em um mesmo texto informação e pensata. Isso serve de baliza para o leitor acompanhar o vaivém do noticiário e, no caso, entender que também para o problema da corrupção existe, como se diz, uma solução simples – e errada.
[Texto fechado às 18h50 de 23/5]