Não é novidade para ninguém: a maior parte da mídia francesa torceu abertamente pela vitória de John Kerry. Ou teria ela torcido pela derrota de Bush, como preferem alguns? A verdade é que, segundo especialistas, nunca uma eleição americana mereceu tanto espaço na mídia francesa.
Foram dezenas de debates e documentários, tanto na TV aberta quanto na paga, tentando explicar aos franceses o mundo pouco conhecido e surpreendente da deep America, que tinha eleito Bush em 2000 e ameaçava repetir a dose.
Um dos debates levou ao estúdio da rede de informação 24 horas LCI uma espécie rara: um escritor francês pró-Bush, Yves Roucaute, que lançou recentemente seu livro La puissance de la liberté e que denunciou no programa ‘uma campanha na mídia francesa para desmoralizar George Bush’. Aliás, desmoralizar George Bush não é difícil, basta contar com sua biografia, sua ignorância, suas mentiras. O personagem do filho de presidente, que até os 39 anos não tinha feito nada de importante na vida a não ser beber e fazer farra, é uma fonte inesgotável para perfis nada edificantes.
‘Falsas sutilezas’
A mídia francesa fez um belo trabalho jornalístico. Os dois candidatos ao posto de ‘dono do mundo’ foram analisados nos mínimos detalhes, as relações bilaterais complicadas foram discutidas à exaustão, os EUA foram percorridos e ‘explicados’ de Norte a Sul por correspondentes e enviados especiais.
Segundo o embaixador inglês entrevistado num dos inúmeros debates televisivos, a eleição presidencial americana despertou mais interesse na mídia francesa que na inglesa. Talvez Freud possa explicar essa relação de amor e ódio, repulsa e atração que franceses e americanos cultivam há séculos, e que teve seu apogeu na campanha antifrancesa desencadeada pela mídia americana no ano passado.
Na França, a imprensa não cultiva o mito da objetividade e da imparcialidade que alguns órgãos de imprensa no Brasil tentam vender aos incautos. O leitor francês sabe quem seu jornal apóia pois isso fica bem claro, seja em editoriais, seja no próprio noticiário.
Na mídia brasileira, no entanto, o leitor ou espectador mais astuto pode perceber, apenas pela análise cuidadosa de uma edição, qual o candidato que um jornal, revista ou TV apóia, através do que noticiam, como noticiam ou do que deixam de noticiar. A ausência de críticas à administração de um governador ou prefeito durante uma campanha eleitoral pode ser apenas uma das formas de apoiar o candidato do mesmo partido.
Todo mundo sabe que há mil e uma maneiras de a imprensa participar das eleições ativamente, sem, contudo, rasgar o véu da imparcialidade. No texto ‘As falsas sutilezas do jornalismo’, da última edição de outubro da a revista Carta Capital, está citada uma manchete da Folha de S.Paulo que dispensa comentários: ‘Maluf é indiciado pela PF e declara seu apoio a Marta’.
Mudança de hábito
Quando escolhem seus jornais e revistas de informação, os leitores franceses não esperam uma suposta objetividade: se são de direita compram jornais nitidamente engajados na defesa do neoliberalismo, defensores de privatizações e reformas que, se adotadas, aproximarão a sociedade francesa do modelo americano; se são de esquerda, lêem os jornais (e revistas) que defendem os valores mais próximos do socialismo, a manutenção das empresas do Estado e as conquistas históricas dos trabalhadores, ameaçadas pela onda neoliberal que varre o planeta.
Sendo assim, ninguém se espantou que a revista Le Nouvel Observateur – de esquerda, dirigida a um público mais intelectualizado que o de suas concorrentes – tenha dedicado uma das capas de setembro às eleições americanas, com uma foto em big close de George Bush e o título ‘Pourquoi il faut battre Bush’ (por que é preciso derrotar Bush). O subtítulo arrematava: ‘Sa réélection serait une catastrophe pour le monde et l’Amérique’ (sua reeleição seria uma catástrofe para o mundo e para os EUA).
Na matéria de 13 páginas, ‘Pourquoi il doit partir’ (por que ele deve ir embora), havia um balanço dos quatro anos de Bush na Casa Branca (um retrato do desastre) e o que Kerry deveria fazer para vencer nos debates e nas urnas. O leitor terminava de ler a reportagem totalmente convencido de que John Kerry era a solução. O único problema é que os leitores do Nouvel Observateur não votam nos Estados Unidos.
Não votam mas deveriam. Pelo menos é o que pensa o escritor Marek Halter, autor de uma dezena de best-sellers, entre ensaios e romances. Depois de conhecido o resultado da eleição, ele declarou ao Le Monde que, considerando-se o poder que os Estados Unidos têm de influenciar a vida de todo mundo, ‘nós também deveríamos ter o direito de votar; e eu preferiria que meu presidente tivesse idéias mais avançadas’.
Mais uma manchete engajada: no dia da eleição americana, 2 de novembro, o diário Libération, fundado por Jean-Paul Sartre e Serge July, em 1973, estampou na capa formato tablóide uma foto de página inteira de Bush com o título ‘L’homme à battre’ (o homem que deve ser derrotado). Em 7 páginas, Libé oferecia aos leitores – como vinha fazendo há várias semanas por meio de artigos, entrevistas e reportagens – uma cobertura completa do que estava em jogo nas eleições americanas.
Nesse mesmo dia, o vespertino Le Monde (com data de 3/11) dedicava suas principais páginas aos EUA mas, um pouco mais objetivo, pretendia na manchete dar ‘todas as chaves da eleição presidencial americana’. Deu uma página para o perfil de cada um dos dois candidatos. E abriu grandes fotos dos melhores momentos da campanha, coisa rara num jornal que mesmo tendo evoluído para valorizar cada vez mais a imagem, ainda tem como principal suporte um texto exclusivo, produzido por uma enorme rede de correspondentes, voltado mais para a análise da notícia do que para o registro factual.
Espetáculo e verdade
Na TV, correspondentes de todos os canais cobriram ao vivo, juntamente com enviados especiais, os principais momentos da votação e da apuração. A LCI ficou no ar 13 horas ininterruptas depois do último telejornal (23 horas) da noite da eleição, acompanhando a apuração e fazendo entrevistas nos EUA e na França.
Um dos pontos altos da cobertura televisiva foi o documentário USA: le blues des médias (USA, a fossa da mídia). Nele, diversos jornalistas e observadores analisavam a cobertura dos jornais e TVs americanos durante os quatro anos de governo Bush. Exceto Carl Bernstein – um dos dois jornalistas que denunciaram o escândalo Watergate – todos os jornalistas e analistas ouvidos foram unânimes em dizer que, sob Bush, o ‘quarto poder’ passou a servir o poder.
Um dos entrevistados disse não compreender como os jornalistas tão veementemente críticos na época da guerra do Vietnã se tornaram ‘cães de guarda do Pentágono’. Outro lembrou que as imagens da guerra do Golfo, em 1991, foram controladas a ponto de fazer da guerra um jogo de vídeo. Helen Thomas, a mais antiga jornalista política de Washington, reconheceu: ‘Nós não fizemos nosso trabalho. Os jornalistas embedded tornaram-se relações públicas do Pentágono’.
O 11 de Setembro foi o grande responsável para essa crise da imprensa americana. Tendo de dar provas de patriotismo a mídia ‘entrou em coma’, de acordo com a expressão de um crítico. Qualquer questionamento era visto como impatriótico. ‘Quando se fala de Mal contra o Bem, entra-se no terreno da teologia. A gente se imaginava na Idade Média’, constatou um jornalista entrevistado.
Scott Ritter, inspetor americano da ONU no Iraque, classificou a Fox News de porta-voz do governo Bush: ‘Eles não querem a verdade, querem o espetáculo. Só querem divertir o público’. Segundo ele, o jornalista Dan Rather, que divulgou as imagens sobre a tortura na prisão de Abu Ghraib, ficou calado antes, durante e depois da guerra.
Felizmente, alguns começam a acordar do torpor.