Acordei há menos de uma hora, liguei a tevê. Sintonizei na Globo, mas cadê o sinal? Mudei para a Band, a mesma coisa: cadê o sinal? Na Record encontrei um pastor com seu jeito inconfundível de me dizer verdades absolutas e de encarar desafiadoramente a câmara. No SBT encontrei um desenho animado reprisado pela quadragésima sétima vez apenas neste ano 2010. A TV Brasil, sempre com seus cenários com cara de encardidos (ainda se usa tal adjetivo?), vejo um sossegado apresentador resvalando a discorrer a epopéia de Lampião e Maria Bonita, Jararaca e Jesuíno Brilhante, fatos passados nos primeiros decênios do século passado. Retorno à Globo, agora sim, vejo Tia Nastácia aconselhando Narizinho e ao fundo a voz de Gilberto Gil. Não tenho dúvida: é a reprise de O Sítio do Pica-pau Amarelo.
Desisto de ver tevê, bom mesmo é saber notícias fresquinhas no rádio. Sintonizo a CBN e escuto um locutor meio desantenado apresentando ‘Este Dia na História’. Aprendo na CBN que o compositor e regente italiano Carlo Pedrotti nasceu em 12 de novembro de 1817. Mal humorado desisto da CBN e vou para a Antena 1 em busca de algum sucesso internacional. Toca o antológico Tico-tico no Fubá, de Zequinha de Abreu.
Dia ruim
Devo estar sonhando ou, pior, fui vítima de pedra na cabeça durante a noite. Não me entendo com as fontes de notícias. Não capto nada. Nem mesmo encontro no rádio o programa Love Hits. De repente lembro de descer dois lances de escada: meus quatro jornais já devem estar jogados nalgum canto do jardim.
O Globo abre sua capa com letras enormes dessas que conhecíamos como garrafais e estampa: ‘Governo começa a asfaltar a Transamazônica’. Deixo de lado porque é o tipo de assunto que absolutamente não me interessa. Retiro um pouco de grama da capa de O Estado de S.Paulo. A foto que toma metade da capa é de uma família sergipana, todos sorrindo. A manchete que quase não cabe na página enuncia: ‘Salário mínimo gordo – R$ 600,00’. Penso comigo: ‘Mas não diziam que cada R$ 1 adicionado ao mínimo significava milhões no rombo da Previdência? Como aumentaram quase cem reais? Tem algo errado aí.’
Procuro a Folha de S.Paulo. As colunas laterais estão vazias, em branco, sem nada escrito. Todas as notícias são da editoria internacional. E tome Katmandu, La Paz, Chicago Bulls e Berlusconi em duas pequenas notas, aparentemente distintas uma da outra.
Ligo o computador e vejo que a velocidade da transmissão de dados e bits piorou significativamente. Ainda assim consigo entrar no espaço virtual da famosa blogueira cubana Yoane Sanchez editora do Generacion Y. Recebo dela esta mensagem, que tomei a liberdade de traduzir ao idioma pátrio:
‘Notícias do Brasil dão conta que o Observatório da Imprensa foi fechado e também as dependências do Instituto Millenium foram lacradas, com dois policiais guardando sua entrada… 27 cartunistas estão presos em Bangu IV… representantes de um Conselho de Comunicação Social passaram a dar expediente das 16 às 22 horas nas redações de Veja, Época, CartaCapital e IstoÉ… As transmissões dos telejornais da noite estão com atrasos superior a 90 minutos devido ao trabalho espinhoso desenvolvido pelos tais censores… por último acabo de saber através de Buenos Aires que três donos de jornais encontram-se retidos na embaixada norte-americana…’
É, o dia começou mal. Nada de interessante para ver, ouvir, ler. Tenho que fazer companhia a mim mesmo. Talvez seja o momento de ler de uma vez por todas A Montanha Mágica de Thomas Mann. Quem sabe, ao fim do dia não terei desbastado umas 270 páginas?
Artigos no índex
O leitor deve estranhar os parágrafos iniciais desse artigo. Mas, a julgar pelo que vem sendo publicado insistentemente pelos grandes jornais e revistas e reverberado nos comentários radiofônicos de nossos principais jornalistas de política, e também verbalizados dia sim e outro também nas bancadas dos telejornais, é assim que o Brasil acordará no próximo mês ou talvez, no ritmo em que a coisa vai, na próxima sexta-feira.
O clima de medo e desconfiança destilado em doses quase homeopáticas pelos grandes grupos de comunicação parece a preparação para a batalha sem fim pela liberdade de expressão no Brasil. O ambiente se arma, o céu escurece, as mentes deixam florescer as ervas daninhas do desapreço escancarado pelos artigos entesourados na Constituição de 1988 que abordam a questão da comunicação.
Há quem pense que o Brasil pretende reabrir uma nova Idade Média, algo tão danoso e deprimente para clérigo iraniano nenhum botar defeito. E tudo porque estes mesmos grupos econômico-midiáticos não ousaram jogar todas as suas cartas durante a Assembléia Constituinte (1/2/1987–5/10/1988), pressionando pela não aprovação dos hoje polêmicos artigos 220 a 224 da oitava Constituição brasileira, a Carta que Ulysses Guimarães, então presidente da Constituinte, cognominou ‘Constituição-Cidadã’. E se formos minimamente imparciais veremos que boa parte da cidadania se encontra palpitando exatamente nesses cinco artigos de seu Título VIII (Da Ordem Social), no exato Capítulo V (Da Comunicação Social).
Preocupa que não se passe um dia sem que algum dos principais veículos de comunicação se insurja contra qualquer idéia de regulamentação da comunicação social no país. É como se obedecessem a uma planilha aprovada por unanimidade, onde o critério de rodízio determina de onde sairá o editorial lança-chamas aparentemente em defesa da liberdade de expressão quando, na verdade, está boicotando qualquer forma de regulação, qualquer forma de se deixar ouvir a sociedade consumidora de informações e de notícias.
Determina que ações do governo merecem ser detonadas ainda no nascedouro, geralmente aquelas originadas na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e quaisquer outras que integrem documentos partidários mencionando os artigos constitucionais há muito jogados no índex da grande imprensa – não por acaso, os que receberam os números 220, 221, 222, 223 e 224. Este último é tratado como blasfêmia aberta. Nele se menciona, dentre outras subversões ao nosso Estado de direito conquistado a duras penas, que ‘para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei’,
Escolhas distintas
E, no entanto, existe um mundo de temas que bem poderiam ser objeto de redobrada atenção por parte de nossa grande mídia. Dentre estes, dificilmente, sua cruzada no Brasil contra a supressão da liberdade de expressão, de imprensa, de opinião, do que for, mereceria constar. É tempo de voltar a ler A espiral do silêncio, de Elisabeth Noelle-Neuman, que morreu em março último. Noelle-Neuman lançou luzes potentes para nos ajudar a entender a diferença entre opinião pública e opinião publicada. E é de um didatismo impressionante: o sujeito pode chegar a pensar que o ponto de vista dominante nos meios de comunicação é também majoritário, predominante na sociedade em que vive. E graças à interatividade da internet ficou mais evidente esta falta de comunhão entre a realidade criada pela mídia e aquela que existe na realidade das ruas.
O recente pleito presidencial cabe à medida às teses defendidas com louvor por Noelle-Neuman. Embora contando com o alinhamento quase total de nossa mídia mais vistosa, o resultado das urnas demonstrou uma verdade irrefutável: quem digita os números na cabine de votação é esse contingente que atende pelo nome de ‘realidade das ruas’.
Cabe também aos estudiosos da comunicação refletir sobre as constantes divergências entre as preferências das audiências e as dos editores, redatores-chefes, diretores de jornalismo. A brutal disparidade fica ainda mais patente nos sítios e blogues noticiosos. É grande a comprovação de que as notícias mais lidas ou mais valorizadas, as mais acessadas e aquelas mais repassadas pelos leitores, nada têm a ver com as notícias escolhidas pelos editores e jornalistas-donos-dos-blogues para figurar em suas páginas principais, em seus espaços virtuais de maior visibilidade e impacto.
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter