Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Modelos, mentiras e estatísticas

As instituições multilaterais encarregadas de regular o comércio internacional anunciam um novo sistema estatístico para mensurar as trocas de valores entre os países, e que deverá substituir a antiga fórmula da balança comercial.

O Estado de S. Paulo, entre os diários de circulação nacional que dedicam mais espaço para economia e política externas, traz na edição de quinta-feira (17/1) uma reportagem bastante didática sobre o assunto, basicamente um relato do discurso feito na véspera pelo diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, e comentários do diretor da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, Angel Gurría (leia aqui o discurso de Lamy, em inglês).

O mote das duas organizações é a abertura dos mercados e a redução dos empecilhos para as trocas comerciais entre nações. Basicamente, o novo sistema para medir a participação de cada país nas vendas e compras de produtos e serviços tenta superar o cálculo bruto dos fluxos de importação e exportação, tradicionalmente usado para mensurar a parcela de cada um no comércio mundial.

Desafio da sustentabilidade

O modelo anunciado leva em conta, por exemplo, os serviços integrados a um bem de consumo e a origem de componentes, tecnologias e sistemas agregados a cada produto ou serviço. Trata-se de uma atualização que vem sendo preparada há cerca de quatro anos, dentro de um programa que considera, por exemplo, a complexidade criada para a definição da origem de um bem pela diversidade de fornecedores presentes em equipamentos, bens e serviços adotados em todo o mundo.

Em um discurso bem-humorado, Pascal Lamy fez glosa com as estatísticas, lembrando uma frase atribuída ao escritor Mark Twain, segundo a qual “existem três tipos de mentira: mentiras, mentiras malditas e estatísticas”.

Disse que o interesse da OMC é assegurar que “as estatísticas de comércio mintam o mínimo possível” e citou alguns elementos que mudaram os padrões dos negócios globais na última década, como a influência dos serviços sobre a manufatura – fator que pode ser bem entendido pela observação do papel das tecnologias digitais na indústria moderna.

No que interessa a observadores da imprensa, a reportagem traz uma lição a ser considerada: não apenas as estatísticas do comércio internacional andam precisando de uma revisão, mas praticamente todo o noticiário econômico parece ignorar algumas mudanças radicais que vêm ocorrendo no sistema econômico. O próprio Pascal Lamy comentou, em sua apresentação, que “é mais e mais difícil explicar o comércio global hoje em dia com base em teorias convencionais e entender ganhos de bem-estar e distribuição num mundo globalizado”.

A questão lembra o desafio da sustentabilidade, que na última década impôs aos debates sobre o sistema econômico a necessidade de considerar outros dados no desempenho das empresas e economias nacionais, como os ganhos ambientais e sociais.

Fundamentalismo de mercado

Os especialistas que vêm trabalhando no novo modelo estatístico para o comércio mundial consideraram, por exemplo, que a crise financeira detonada no final de 2008, e o que Pascal Lamy chama de “Grande Colapso Comercial” que se seguiu como efeito colateral, expuseram as falhas no sistema de monitoramento da economia globalizada.

Uma das questões que passam a ser levadas em conta, por exemplo, é o fato de que os serviços, na visão convencional, representam 20% do valor das trocas globais. No entanto, se for considerado o valor que os serviços agregam como novas funções de negócios – como pesquisa e desenvolvimento e a logística moderna –, sua participação pode ser muito maior.

Assim como a questão da sustentabilidade demonstrou o atraso da imprensa, de modo geral, em discutir os dogmas do mercado, a iniciativa da Organização Mundial do Comércio e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico apanha os jornais brasileiros envolvidos em discussões sobre “pibinho” e balança comercial.

O que vemos diariamente nos jornais, com exceção de um ou outro analista mais ousado, é a repetição de padrões que já fazem pouco sentido, como a mensuração do desenvolvimento de um país exclusivamente pela evolução do Produto Interno Bruto e a definição de sua capacidade produtiva pelo volume de trocas com outros países.

O conservadorismo da imprensa e seu apego a uma visão fundamentalista de mercado tendem a dissimular o fato de que o sistema econômico está passando por mudanças profundas em todo o mundo.