Tempos houve em que a expressão ‘jornalismo crítico’ soaria redundante e, como tal, inútil. Em tempos outros, porém, seu uso parece tornar-se necessário. Não mudou a semântica da língua; alteraram-se, e profundamente, os conceitos de atividade jornalística.
Injunções políticas, dificuldades econômicas e, por que não incluir, certa acomodação estratégica vão perpetuando um modo próprio de contornar crises, atenuar confrontações sem maiores desgastes. Tal quadro não seria merecedor de registro se dele não decorressem deformações que podem atingir diretamente o alvo prioritário do que faz a própria atividade jornalística existir: o leitor.
A inautêntica neutralidade
Uma página de jornal é, antes de tudo, uma construção semiótica. Este saber não é do domínio a não ser de quem a essa área de conhecimento se destina, seja para tornar-se codificador, seja para entregar-se a um desempenho analítico na função de decodificador profissional. Ambos, portanto, bem conhecem as sutilezas e artifícios atinentes aos fundamentos essenciais da comunicação. Conseqüentemente, também dominam e regulam a filtragem crítica do que se torna objeto: a mensagem.
A experiência brasileira, no campo jornalístico, tem negligenciado as implicações tipificadas nos parágrafos anteriores. Espertamente, difunde-se a idéia de que a prática jornalística é regida por critérios de objetividade e de imparcialidade. Se o primeiro é razoavelmente defensável, o segundo é inteiramente insustentável. A língua é objeto como sistema constituído e, na mesma proporção, é subjetiva quando se transforma em expressão. Como qualquer enunciado – escrito ou falado – é da ordem expressional, torna-se impossível retirar da comunicação o teor subjetivo, o que acarreta a projeção da parcialidade. Quando muito, pode ser dosada, mas não evitada.
Entre as muitas contradições que habitam a questão da suposta neutralidade, uma delas fica exposta no recorrente hábito da expressão ‘formador de opinião’ para os profissionais de comunicação. O uso freqüente, já incorporado como jargão, parece isentar suspeição. Antes de mais nada, convém lembrar que, à exceção da imprensa britânica, a expressão não figura em outras áreas da Europa. E, mesmo no Reino Unido, o emprego se reveste de um certo pudor, característica absolutamente ausente em nossas regiões tropicais. Seguramente, não faltarão razões tanto para o desuso ou para eventual emprego quanto para sua freqüente utilização, o que merece algumas considerações.
De início, há que se definir um ponto: informar para o leitor formar sua opinião ou informar algo que, pelo ‘modo’ de fazê-lo, conseqüentemente forma a opinião do leitor. Em sendo a primeira possibilidade a verdadeira, esvazia-se de sentido a expressão ‘formador de opinião’. Em sendo, porém, verdadeira a segunda proposição, então o leitor se torna refém do codificador. A opinião, com o que ela significa, é sempre auto-expressional. Certa ou errada, a opinião é parte constitutiva do indivíduo, razão pela qual não se pode, exceto pela força, privar ou inibir a opinião de quem quer que seja a respeito do que for. Assim compreendido, o jornalismo (ou jornalista) ‘formador de opinião’ se assume como indutor, tutor e condutor da vontade do leitor. Isto é grave para o princípio da autonomia, bem como para a solidez da democracia.
A questão, portanto, não é simples. Menos ainda é ingênua a adoção do rótulo ‘formador de opinião’. Talvez convenha que a expressão inicie seu processo de reclusão, em benefício da própria salutar e dignificante atividade jornalística, principalmente em tempos nos quais tanto empenho parece haver em colocar-se em debate o fortalecimento do jornalismo no Brasil. E também pode ser que outras razões ainda obscuras existam.
O jornalismo acrítico
Inúmeros foram os jornais que, na primeira página da edição de quarta-feira (8/9), estamparam, por vezes lado a lado, foto do terror ocorrido na Ossétia do Norte e foto do sorridente maratonista, Vanderlei Cordeiro de Lima, alçado à condição de ‘herói nacional’ e, como tal, escolhido pelo governo para abrir o desfile patriótico em homenagem à data da ‘Independência’. A propósito, bem ilustrou a declaração do ministro da Casa Civil, José Dirceu, reproduzida pela Folha de S.Paulo (8/9): ‘O Vanderlei sempre nos emociona, pois representa o esforço de todos nós para melhorar o Brasil’. A frase, sem dúvida, é um primor de ufanismo marqueteiro, ainda mais quando associada à natureza da festividade.
Perpassando outros jornais, a todo instante ressurgia a associação entre o terror na Rússia e a alegria patriótica dos festejos. Ali, numa justaposição perfeita, a união entre o sangue da morte e o suor pela injusta medalha de bronze. De um lado, a inflexibilidade expressional do rosto de Vladimir Putin; de outro, a euforia, quase infantil, na imagem de Vanderlei Cordeiro.
Terá sido fruto da mera coincidência infeliz que duas cenas tão contrastantes entre si se unissem? Terá sido escolha editorial, motivada por engenhosa sagacidade semiótica? Por outra, desprezadas ambas, tudo não terá apenas sido um olhar semiotizado deste leitor? E, em sendo assim, apague-se tudo (ou não). O fato é que está ali. O que decide não é a intenção de quem codifica e sim o efeito na decodificação.
É no modo de recepção que se constrói (ou desfaz-se) o sentido. O jornalista tem de ser capaz de, por antecipação, promover as leituras possíveis quanto ao que pretende definir como codificação final. Esse é o supremo momento do conflito ético, diante do qual não pode haver insensibilidade ou descaso. Os ‘formadores de opinião’ precisam saber, em profundidade, que mensagens diretas estão passando e que outras, por vias indiretas, conscientemente (ou não) estão formulando.
Dada a postura acrítica da codificação predominante no jornalismo brasileiro, prolifera a tendência da neutralização das densidades dramáticas. O jornalismo impresso não se dá conta de que, assim procedendo, incorpora um modelo de linguagem televisiva, abrindo mão de sua especificidade e eficácia. Por fim, resulta um ‘produto-esquizo’: telejornal impresso.
Entre o terror e o horror
À primeira vista, somos levados a entender que palavras como ‘terror’ e ‘horror’ possam equivaler-se, ou, no máximo, diferirem em grau de intensidade. Todavia, ao juízo de quem lida profissional e existencialmente com a língua, não escapa a exata fronteira com a qual as duas palavras se separam.
O ‘terror’, pela sua própria origem, está associada a ‘terra / território / terreno’; portanto, seu significado guarda a especificidade semântica em torno da ‘espacialidade’. O terror é sempre setorial, geográfico, visível, podendo ser produzido pela ação humana ou por qualquer outra força, a exemplo da ação da natureza. Já o ‘horror’ tem enraizamento no ‘homem’. Somente o ser humano é capaz de gerar e de reconhecer o espectro do horror.
Igualmente, é o mesmo ser humano que, posto diante do ‘horror’, pode não o reconhecer. Nenhuma matéria jornalística é capaz de enfocar um ato de terror sem que fique explícito seu conteúdo. Todavia, não é qualquer matéria jornalística que é capaz de, expondo o horror, traduzi-lo como tal.
É exatamente para este ponto que a presente reflexão pretende encaminhar a questão. O ocorrido na maratona de Atenas, ocasião na qual o sofrido e quase desamparado atleta brasileiro teve a medalha de ouro impedida pela inesperada abordagem de um desconhecido, não produziu – seja no atleta, seja nas autoridades responsáveis –, em geral, nenhuma indignação maior. A própria imprensa que faz a cobertura esportiva optou por não conferir maior gravidade ao fato. Afinal, o bronze estava assegurado. Aí, nessa atitude resignada e submissa – sob a máscara da falsa compensação – se aloja o ‘horror’ disfarçado de alegria.
Pela magia envolvente e sedutora do ‘espírito festeiro’, abre-se mão do repúdio à injustiça. O pobre atleta, talvez, não tenha dimensionado a perda na sua extensão maior. Com a troca do ouro pelo bronze, Vanderlei perdeu o nome no livro da história olímpica brasileira. Nela, Vanderlei Cordeiro de Lima estaria, para sempre, registrado como o primeiro maratonista brasileiro a conquistar medalha de ouro. Com o bronze, vai-se embora a imortalidade, em troca de homenagens de momento e de exploração unicamente marqueteira.
O jornalismo acrítico prefere não tematizar essas coisas. Opta por não ver, no ‘cordeiro’ Vanderlei, a imagem histórica de um país cuja característica parece ser a de contornar situações para as quais só existiria o caminho da confrontação. Aí, nessa simulação de atitudes, dá-se a fratura ética e corrobora-se a identidade frágil.
Vamos ilustrar a exposição com outro fato ‘olímpico’ no qual o sentido profundo de um gesto assegura uma página de imortalidade na história. Ninguém recordaria a figura de um americano, medalha de ouro na Olimpíada de Berlim (1936), em prova de atletismo. Tantos atletas americanos venceram essa mesma prova em outras Olimpíadas e com recordes de velocidade cada vez mais expressivos. Todavia, foi o gesto do negro James Cleveland Owens (ou, simplesmente, Jesse Owens) que, não satisfeito com a medalha de ouro, fez questão de ir à frente do palanque e, diante de Hitler, afirmar, com o braço erguido, a vitória de uma raça que nada tinha de ariana. Hoje, seu gesto é presença obrigatória em qualquer documentário sobre os fantasmas da época. Esta é a leitura que não interessa ao jornalismo acrítico nem ao ufanista ministro.
Sim, o horror é mais perigoso que o terror. O terror é consensual no seu reconhecimento enquanto o horror pode ser uma avaliação pessoal ou de alguns. O problema é saber o olhar de quem estará correto. Guardadas as devidas diferenças, mas para melhor situar-se a análise, caberia indagar o seguinte: a imprensa italiana soube identificar o ‘horror’ que progressivamente se difundia com o fascismo? A imprensa alemã foi capaz de, em tempo hábil, nos arredores dos anos 1930, perceber o ‘horror’ que habitava o partido nazista?
Para ambas as perguntas, a resposta – a julgar pelos registros de época – é não. Pior: os jornais alimentaram o fascismo e o rádio multiplicou o efeito galvanizador dos discursos de Hitler. O horror tem a propriedade de camuflar-se e nisto consiste o perigo. A diferença é ditada pelo modo de ‘ler’.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro