Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Morto pelo mercado

O Jornal da Tarde se despediu, na quarta-feira (31/10), com um editorial autoexplicativo que serve também para outros títulos da imprensa tradicional: as responsabilidades pelo infortúnio e o fracasso estão sempre nos outros, no lado de fora, nas circunstâncias externas. Nunca nos próprios erros.

O texto começa, simbolicamente, com um lugar-comum extraído da mensagem de despedida de Getulio Vargas: o JT sai de cena “para entrar na história” – clichê barato que deslustra a própria história do jornal. E termina com a confissão de impotência diante das transformações produzidas na sociedade com a evolução das tecnologias digitais de comunicação e informação.

Na quinta-feira (1/11), o resto da imprensa faz o epitáfio e formaliza o funeral, mas ficam no ar algumas questões não respondidas. Por exemplo, o que foi feito das qualidades que eram vanguarda em 1966? Por que razão o último Prêmio Esso conquistado pelo antigo vespertino – critério de valor usado para destacar suas qualidades – aconteceu em 1995, exatamente há 17 anos? As gerações que se sucederam não produziram jornalistas brilhantes, ou a empresa proprietária não valorizou o que possuía?

Capa escondida

Junto com as lamentações daqueles que tiveram no JT um exemplo de jornalismo dinâmico e inovador, é preciso emparelhar outras observações sobre o que ocorreu nas três últimas décadas.

Resumidamente, o que houve foi que o Jornal da Tarde envelheceu precocemente. Já no início dos anos 1980, quando boa parte dos jornalistas fundadores atendia em outros endereços, o JT era transformado em um panfleto político, com reportagens pautadas diretamente pelo proprietário, com viés predefinido e frases a serem coladas na boca de fontes previamente selecionadas.

Esse foi o critério que determinou, por exemplo, a verdadeira perseguição que foi movida contra o ex-governador Orestes Quércia, cuja reputação foi soterrada sob uma avalancha de acusações da quais apenas uma – a construção de uma cerca em fazenda de sua propriedade com dinheiro público – resultou em condenação.

Não é o caso, evidentemente, de emitir aqui um atestado de probidade ao falecido político, mas pode-se levantar, nos arquivos, a imensidão de acusações sem provas que o Jornal da Tarde levantou contra ele.

Também não é correto criticar o animo denunciatório do jornal, pois convenciona-se que uma das funções sociais da imprensa é fiscalizar o poder. Com ampla liberdade.

O episódio é apenas um exemplo de como as qualidades de ousadia e protagonismo que fizeram do Jornal da Tarde um modelo de vanguarda se transformaram, rapidamente, em voluntarismo e manipulação por parte de seus controladores.

Em sua senilidade precoce, o JT se transformou em porta-voz obediente de uma visão de mundo radicalmente neoliberal, já no início dos anos 1980, em um processo que acabou por expelir os últimos dissidentes da linha oficial.

Essa linhagem política sempre considerou que o melhor momento do vespertino foi a série de reportagens publicada em 1983 sob o título “A república socialista soviética do Brasil”, na qual Ruy Mesquita, o diretor, denunciava o que considerava excessos do estatismo sob o decadente governo militar. Curiosamente, essa capa não foi selecionada entre os melhores momentos do Jornal da Tarde em sua edição final.

O mundo emburreceu?

Para completar, convém voltar ao editorial fúnebre. Diz o texto que o Jornal da Tarde foi vitimado pela nova velocidade da notícia, fruto das tecnologias que transformam a sociedade.

Criou-se, no dizer do editorialista, um “afrouxamento da contradição essencial entre o meio e a mensagem; entre o ritmo do pensamento e os imperativos da indústria e da logística que delimitavam as fronteiras da qualidade possível no jornalismo impresso”.

Lá pelas tantas, o texto afirma que “a submissão acrítica ao fascínio da velocidade sem rumo devolve a humanidade a uma crescente incapacidade de pensar(…)”, ou seja, não existe mais inteligência fora do papel.

A afirmação é mais do que discutível, provavelmente gerada pela dor do luto. Também se pode questionar outra tese, a de que “o pensamento escrito, como um todo (e não só o jornalismo), se debate numa crise (…) universal de desajuste de velocidades”.

Sutilmente, somos levados a crer que o mundo ficou mais burro e por isso não há mais lugar para o jornalismo dinâmico e criativo.

Mas o que o editorial de despedida declara, sem disfarces, é que, ironicamente, o jornal que um dia encantou seus leitores foi morto pelo deus mercado.

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