O MPF (Ministério Público Federal) de São Paulo abriu investigação sobre a atuação do grupo de mídia português Ongoing no Brasil.
A suspeita é que o grupo tenha usado de artifício para burlar a Constituição, que proíbe o controle por estrangeiros de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão no país.
O Ongoing entrou nesse mercado no final de 2009, com o lançamento do diário Brasil Econômico. Em abril deste ano, comprou, por R$ 75 milhões, a empresa que publica os jornais O Dia, Meia Hora e Marca.
O Ongoing tem dado seguidas indicações, em Portugal, de que comanda as publicações no Brasil e de que pretende ampliar sua presença em mídia no país.
Executivos do grupo já anunciaram em Portugal a intenção de compra no Brasil de uma participação em uma emissora de televisão, o lançamento de um canal pago com conteúdo econômico e de um jornal em Brasília.
A Folha apurou que o grupo já fechou contrato com o Jornal Alô Brasília e pagará R$ 15 milhões por uma participação de 49%. O proprietário do jornal, Helio Queiroz não negou. ‘Tenho compromisso de confidencialidade. Não posso falar’, disse.
O procurador Márcio Schusterschitz Araújo iniciou a investigação a partir de representação da ANJ (Associação Nacional de Jornais), que aponta indícios de que o Ongoing estaria violando o limite de 30% de participação estrangeira em meios de comunicação permitido pela Constituição.
A empresa Ejesa (Empresa Jornalística Econômico S.A.), que edita os jornais do grupo no Brasil, tem 70,1% de seu capital em nome da brasileira Maria Alexandra de Almeida Vasconcellos. Ela é mulher de Nuno Vasconcellos, presidente do Ongoing, que tem 29,9% da Ejesa.
O procurador quer saber a origem dos recursos investidos nos jornais. A Ejesa informou ao MPF que Maria Alexandra é casada com separação de bens, situação que indicaria ser dela o capital integralizado na empresa.
Filha de pais portugueses, ela deixou o Brasil para viver em Lisboa, aos 14 anos, quando os pais se divorciaram. O pai, José Carlos Sottomayor Negrão Mascarenhas, continuou no Rio de Janeiro, onde dirige uma empresa de locação e montagem de equipamentos para eventos.
Para a ANJ, há indícios de que o Ongoing controle a linha editorial dos jornais no país. O registro do capital em nome da brasileira seria artifício para ocultar o mando dos estrangeiros.
Respaldo político
Durante duas semanas, a Folha rastreou a movimentação do Ongoing. As informações fornecidas por empresários, executivos e políticos no Brasil e em Portugal sugerem que o grupo foi estimulado por membros do PT a implantar no país uma rede de comunicação alinhada com o governo que diminuísse o poder dos grandes grupos privados.
O principal interlocutor do grupo com o governo é o ex-ministro e ex-deputado federal (cassado no escândalo do mensalão) José Dirceu, colunista do Brasil Econômico. A namorada dele, Evanise Santos, é diretora de marketing institucional da Ejesa.
Ainda segundo a Folha apurou, o Ongoing usa serviços do escritório de consultoria de Brasília – JC&S Brasil Consultores – para ajudá-lo a buscar recursos para financiar seus projetos. Entre os alvos estão fundos de pensão estatais. O responsável pelo escritório, Júlio Silva, seria da confiança de José Dirceu.
Apetite empresarial
No plano de mídia do grupo, a aquisição ou participação em uma emissora de TV é fundamental. Segundo a Folha apurou, o Ongoing tenta comprar os 29%, de Marcelo Carvalho na RedeTV!. O valor inicial seria US$ 300 milhões. Não houve avanço e o grupo prepara uma oferta de valor mais baixo.
O acionista da RedeTV! diz que ‘não tem negociação com Ongoing nem com undergoing (sic)’ e que por essa cifra ele ‘nem pisca’.
Enquanto negocia com a RedeTV!, o Ongoing também tenta convencer a Bandeirantes a fazer coproduções ou terceirizar parte de sua produção para o grupo.
O apetite por novos negócios levou o Ongoing a contratar Carmelo Furci – ex-executivo da Telecom Italia – e a Angra Partners. Ambos ficaram pouco tempo. Furci deixou a presidência do Ongoing em outubro e se recusou a falar da experiência.
Em julho, o grupo registrou o Ongoing Infraestrutura, que atuará na construção de estradas, ferrovias, aeroportos e que estuda uma participação no trem-bala.
Em outubro, foi criada a OnCasas, que fornecerá casas pré-fabricadas ao Minha Casa, Minha Vida. Antes de abrir a empresa, executivos do Ongoing estiveram com o ministro das Cidades, Márcio Fortes, para vender a ideia.
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‘Cumprimos integralmente a legislação’, afirma empresa
O Ongoing afirma que não existe nenhuma ligação com o governo brasileiro ou com partidos políticos. ‘Somos um grupo independente’, disse a empresa em resposta enviada por e-mail às perguntas da Folha.
A companhia alega que ‘cumpre integralmente a legislação brasileira como, certamente, fazem todos os grandes grupos de mídia que atuam nesse mercado’.
O grupo informou ainda que tem mais de 200 milhões em capital próprio, ativos de mais de 1,4 bilhão e endividamento bancário que não ultrapassa 600 milhões. Por razões estratégicas, o Ongoing não revelou resultados operacionais e investimentos futuros. A Ejesa negou a compra de 49% do Jornal Alô Brasília.
O grupo confirmou que o canal de conteúdo econômico existente em Portugal pode ser uma área de investimento atraente para o grupo no Brasil e reforçou interesse na área da habitação social por meio da OnCasas.
Sobre a atuação do ex-deputado cassado José Dirceu, o Ongoing informa que não há relação. ‘Ele é apenas um dos colunistas do Brasil Econômico.’ A empresa negou a existência de contrato no Brasil ou Portugal com a JC&S Brasil Consultores, pertencente a Júlio Silva, que seria da confiança de Dirceu.
A empresa não explicou por que contratou Evanise Santos, namorada de Dirceu, como diretora de marketing institucional da Ejesa. Consultada, Santos disse que foi funcionária do cerimonial do governo FHC e que foi contratada por sua experiência.
O Ongoing defendeu a contratação do deputado português Agostinho Branquinho com base em sua competência anterior à atuação como político.
Dirceu disse que não tem nenhuma relação profissional com o Ongoing e que tampouco faz intermediação de contatos com o governo.
Grupo de mídia
Questionado sobre a acusação de que o PT e o governo Lula estimularam a vinda do Ongoing para criar um grupo de mídia em contraposição à grande imprensa nacional, Dirceu respondeu dizendo que a pergunta estava ‘prejudicada pelas duas primeiras respostas’ [de que não trabalha para o Ongoing e de que não faz intermediação de contatos com o governo]. Usou a mesma resposta à pergunta sobre o suposto controle português na Ejesa.
Por telefone, José Sottomayor Negrão Mascarenhas, pai de Maria Alexandra, dona de 70% da Ejesa, considerou ‘ridícula’ a acusação de que o dinheiro investido na empresa seria do Ongoing, pertencente ao seu genro.
Por e-mail, Mascarenhas, diretor da OnCasas, ressaltou que tanto a Ejesa quanto o Ongoing ‘têm meios de contato oficial’. (EL e JW)
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Vasconcellos atua no país desde 2001
Não é a primeira vez que Nuno Vasconcellos, presidente do Ongoing, faz negócios no Brasil. Entre 2001 e 2008, ele tornou-se sócio da Arvitec, uma empresa de internet.
No auge dos investimentos pontocom no mundo, o empresário acreditava que o mercado brasileiro seria mais lucrativo do que o português. Juntou-se então a dois primos e investiu na empresa, fundada pela brasileira Delta de Negreiros.
‘O Nuno é de uma família tradicional portuguesa, tem muitos contatos em empresas e no governo’, disse Negreiros. ‘Tudo lhe interessa. Ele vê oportunidades em todos os lugares.’
A Folha apurou que os contatos e o senso empreendedor levaram Vasconcellos para dentro da PT (Portugal Telecom), colocando o empresário no primeiro escalão dos executivos do país.
Em 2006, o Ongoing adquiriu cerca de 2% da operadora portuguesa, sendo praticamente financiado pelo BES (Banco Espírito Santo), maior acionista privado da PT. Naquela ocasião, a entrada do Ongoing na PT foi uma espécie de proteção, porque a operadora precisava de sócios contrários à proposta de compra da PT pelo grupo Sonae. Desde então, Ongoing e BES passaram a atuar como ‘núcleo duro’ da PT.
Em 2010, esse núcleo perdeu a força com a proposta de 7 bilhões feita pela Telefónica para ficar com os 30% da PT no bloco de controle da Vivo. O Ongoing defendeu a venda. O negócio foi fechado por 7,5 bilhões e renderá 102 milhões em lucros somente ao Ongoing.
Antes do acerto final pela venda do controle da Vivo, o grupo também pressionou pela entrada da PT na Oi.
A Folha apurou que o Ongoing chegou a tentar contatos com os sócios privados da Oi. As negociações só começaram com a contratação do BES Investment para representar a PT, uma operação que isolou o Ongoing.
‘Estilo trator’
Esse estilo controverso do grupo repetiu-se nas negociações com a Impresa, grupo de mídia de Francisco Pinto Balsemão, a quem pertence a emissora SIC, uma das três maiores audiências em Portugal.
Balsemão fundou a companhia em 1972 junto de Luiz Vasconcellos, pai de Nuno, e foi padrinho de casamento do filho do sócio.
Em 2010, o Ongoing passou a deter 22,4% da Impresa e tentou ampliar sua participação até 100%. Balsemão foi a público dizer que não abriria mão do controle.
A relação entre eles teria piorado quando Balsemão descobriu que, paralelamente, Nuno negociava a compra de 30% da TVI, pertencente aos espanhóis da Prisa, que atua em Portugal.
O negócio foi barrado pela autoridade portuguesa das comunicações porque, dentre outros motivos, daria ao Ongoing 75% do mercado publicitário em TV do país.
Especulava-se que o Ongoing estaria tentando entrar na TVI para se alinhar com o primeiro-ministro português, após a fracassada tentativa da PT em adquirir parte da emissora.
Uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) investigou a suposta interferência do governo em favor das duas empresas.
O primeiro-ministro, José Sócrates, considerava o telejornal noturno da emissora, líder de audiência em Portugal, um ‘telejornal travestido’, destinado a promover a ‘política da calúnia’ contra o governo.
O negócio com a emissora não deu certo e a CPI foi arquivada. Em seguida, Vasconcellos contratou José Eduardo Moniz, ex-diretor-geral da TVI, e o deputado Agostinho Branquinho, que integrou a CPI. Moniz será o responsável pelos negócios na área de televisão, inclusive no Brasil, e Branquinho será diretor do grupo no país.
Fernando Soares Carneiro, ex-administrador da PT, também foi contratado pelo Ongoing. Carneiro desligou-se da operadora após ter aplicado 75 milhões provenientes do fundo de pensão dos funcionários da PT em fundos de investimento do Ongoing.
Dívida para crescer
Aos 45 anos, Nuno Vasconcellos começou a construir sua rede de relacionamentos na Andersen Consulting, onde permaneceu por oito anos. Depois abriu em Portugal uma filial da Heidrick & Struggles, uma das principais empresas caça-talento na Europa, em parceria com o espanhol Rafael Mora.
Em 2006, ele fundou o Ongoing, considerado por analistas um grupo muito alavancado (toma empréstimos para fazer investimentos).
Um balanço divulgado em 2008 indicou que o grupo tinha ativos de 1 bilhão e uma dívida de 834 milhões. A Folha apurou que o capital próprio era de 50 milhões. Hoje, a empresa diz possuir mais de 1,4 bilhão em ativos, a dívida não chega a 600 milhões, e tem 200 milhões em capital próprio. (Elvira Lobato e Julio Wiziack)