As notícias sobre a morte da mídia impressa foram um tanto ou quanto exageradas. Os abutres já voavam baixo na blogosfera, coveiros e carpideiras se agitavam ao redor do moribundo, mas a mídia impressa, salva e revigorada pelo WikiLeaks, deu mostras de que seu fim iminente são fábulas, não favas, contadas. The New York Times, The Guardian, El País, Le Monde e Der Spiegel, os cinco grandes veículos escolhidos pelo WikiLeaks para cúmplices e avalistas do Cablegate, não circulam apenas na internet, ainda saem de uma gráfica, no formato em que consolidaram sua respeitabilidade.
Para os jornalistas, os historiadores e a opinião pública, o WikiLeaks foi um maná. Festejemos.
Quanto aos diplomatas, xeretar, segredar, fofocar e mentir são músculos do ofício, e eles não se saíram de todo mal dos vazamentos; ao contrário, mostraram-se, no geral, competentes, para orgulho de muitos americanos, que nem por isso aplacaram sua irracional fúria contra o WikiLeaks e sua exclusiva preocupação com o futuro da confiabilidade diplomática. Como jornalista e cidadão, meu maior (mas não exclusivo) compromisso é com a confiabilidade da imprensa, com o futuro da livre circulação de informações e da transparência e responsabilidade de governos e entidades públicas e privadas.
Irresponsável, narcisista, criminoso
Até prova em contrário, é esse o apito que o WikiLeaks toca. É um consolo saber que a estrutura montada por Julian Assange, fundador e guia espiritual do WikiLeaks, permite ao site sobreviver sem lideranças, hierarquias e até ao boicote orquestrado de antigos parceiros como a Amazon, Visa, Mastercard, etc. Alguém o definiu como ‘um vasto Deep Throat da Era Napster’. Sim, o Napster deixou de existir, mas sua insurgência afetou para sempre a indústria de discos e a difusão da música. O WikiLeaks representa um novo tipo de luta, de ativismo político apartidário. Sua ciberguerrilha já mudou as regras do jogo jornalístico ao criar o que até recentemente parecia impensável: empresas competidoras compartilhando os mesmos furos diariamente.
Detido na cadeia de Wandsworth, no sul de Londres – uma das cinco em que Oscar Wilde, também acusado de ofensas de natureza sexual, viu o sol nascer quadrado em 1895 –, Assange ficou sem acesso à internet, como se algum crime online tivesse motivado sua prisão. Houve quem visse nessa proibição mais uma evidência de que as nebulosas acusações de ‘estupro’ e ‘sexo forçado’ por duas ex-tietes de Assange fazem parte, mesmo, de um complô para puni-lo por supostos ‘delitos’ cometidos com os préstimos de um modem. Libertado sob fiança no dia 15, somente em 11 de janeiro decidirão seu destino.
O WikiLeaks não divulgou mentiras nem algo sequer remotamente perigoso como seria, por exemplo, vazar os planos de desembarque das forças aliadas na Normandia, para citar uma das mais hiperbólicas comparações assacadas contra o site e sem pudor repetida ad nauseam por políticos conservadores e colunistas de direita. Ao que se sabe, não há documentos top secret no acervo de 250 mil documentos sigilosos do WikiLeaks, que, ao contrário do que seus desafetos vivem a martelar, vem liberando somente uma ínfima parcela dos arquivos, que antes de chegar às primeiras páginas e à internet passam pelo filtro dos cinco mais respeitados veículos de informação do Ocidente, aos quais astuciosamente se associou.
Quando vão prender os editores do Times, do Guardian, do El País, do Le Monde e da Der Spiegel? E, firmada a jurisprudência, quando vão prender Bob Woodward pelos vazamentos contidos em seus best-sellers?
Assange se autodefine como ‘jornalista, publisher e inventor’. Acredita ter inventado um sistema seguro para acabar com a censura à informação e aos denunciantes de malfeitorias governamentais e corporativas. Herói e mártir, para uns; vilão e terrorista, para outros, já o insultaram de irresponsável, paranoico, narcisista, dominador, criminoso: ‘Assange, o Bin Laden da web’. Para gozar quem o acusa de espionagem, escolheu um parâmetro assaz conveniente, o agente 007: Assange, ‘o James Bond do jornalismo’. Um articulista da revista The New Yorker comparou-o a Klaatu, o extraterreno do filme ‘O Dia em que a Terra Parou’, recebido a tiros em Washington por nos ter trazido uma mensagem inconveniente. Procede.
‘Foi um prazer’
Tecnicamente, Assange é um traficante internacional de informações que governos e instituições tentam esconder, não raro por razões escusas. Com a ajuda de centenas de voluntários, ativistas, nerds, criptógrafos, recolhe documentos secretos como se fossem donativos e os repassa sem ônus à mídia. O procedimento é igual ao de um jornal investigativo, ou melhor, ao de uma agência de notícias investigativa. Se por algum motivo Assange ficar para sempre impedido de exercer suas funções, o WikiLeaks seguirá em frente, com o mesmo empenho e na mesma cadência. E se um poder superior conseguir desativar o site, outros surgirão. É um processo irreversível.
Seu sobrenome é uma corruptela de Ah Sang, imigrante chinês que se estabeleceu numa ilha da costa australiana, no começo do século 19. Seus ancestrais maternos foram para a Austrália várias décadas depois, procedentes da Irlanda e Escócia. Sua tendência à errância, ao nomadismo, talvez seja genética. Sua mãe, Christine, mal completara 17 anos quando fez uma fogueira de seus livros, montou numa moto e sumiu no mapa.
Filho de um diretor de teatro itinerante, Julian Paul Assange nasceu no mesmo dia (3 de julho de 1971) em que Jim Morrison foi encontrado morto numa banheira, vitimado por uma overdose de heroína. Aos 8 anos conheceu seu único padrasto: um músico dado a ataques de fúria de quem sua mãe passaria cinco anos fugindo. Sempre na estrada, teve uma infância de Tom Sawyer e, por força das circunstâncias e de um arraigado preconceito de Christine contra escolas e professores, uma educação informal. ‘Não queria que meu filho desenvolvesse um respeito não saudável pela autoridade e desinteresse pelo ensino’, justificou-se Christine a um jornalista interessado em descobrir como o filho dela se transformara num prodígio digital.
Aos 14 anos, Assange já mudara de endereço 37 vezes. Estudando por correspondência e tomando aulas particulares, superou aos poucos suas deficiências. Anos depois, estudaria física na Universidade de Melbourne. Pilotando um Commodore 64 presenteado pela mãe, precisou de alguns meses apenas para transformar-se, ainda adolescente, num sofisticado programador de informática. Com o codinome de Mendax (tirado de uma Ode de Horácio), associou-se a dois hackers, formou o grupo International Subversives e invadiu uma infinidade de computadores corporativos na Europa e na América, deixando sempre o mesmo recado: ‘Foi um prazer brincar com seu sistema. Não lhe causamos dano algum e até o livramos de alguns bugs. Por favor, não nos delate à polícia federal australiana’.
Imagens do massacre
Apesar das precauções que tomava (seus disquetes eram guardados num apiário), acabou em cana e correu o risco de pegar 10 anos de cadeia. Inocentado em 6 das 31 ações penais que contra ele moveram, afinal caiu nas mãos de um juiz camarada, que o indultou do resto por entender que ‘o réu havia apenas bisbilhotado’, movido por sentimentos altruístas. Àquela altura, Assange já tinha um filho (Daniel), por cuja custódia lutou tenazmente anos a fio, com a ajuda de Christine, esta sim, pelo visto, a única mulher confiável de sua vida. Enquanto aguardava o julgamento, leu três vezes O Primeiro Círculo, de Soljenitsin, releu Kafka e O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, em cujas páginas, dizem, encontra-se a chave para entender sua cruzada contra informações secretas, hierarquias institucionais e sociedades repressoras.
Tão logo ganhou a liberdade, isolou-se numa casa em Melbourne para aperfeiçoar sua bisbilhotice eletrônica. Através de um site que, por questão de segurança, hospedara num servidor sueco, inaugurou os serviços do WikiLeaks em dezembro de 2006, tornando pública uma decisão secreta do xeque Hassan Dahir Aweys, líder rebelde da Somália, ordenando a execução de autoridades do governo por um bando de sicários. Nove meses atrás, alugou uma casa em Reykjavik, na Islândia, onde montou um bunker eletrônico, com meia dúzia de computadores, e editou aquele vídeo do massacre de 18 pessoas por soldados americanos, no Iraque, gravado a bordo de um helicóptero Apache em 2007, que seria o cartão de visitas do WikiLeaks.
O resto da história vocês conhecem. E continuarão acompanhando por muito tempo.
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Colunista do Estado de S.Paulo, foi da equipe de O Pasquim e é autor de As Penas do Ofício (Agir)