Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Mudança radical na imprensa completa 50 anos

Há exatos cinqüenta anos, os americanos Dick Hickock e Perry Smith não imaginavam que ao promoverem o assassinato de quatro pessoas na pequena e interiorana cidade americana de Holcomb estavam, de certa forma, inspirando a criação, com sangue e violência, de um gênero inovador para o jornalismo: o chamado new journalism – uma revolução que resgatou a literatura dentro do tradicional jornalismo norte-americano.

Truman Capote descreveu e apurou de forma minuciosa a matança da família Clutter no clássico romance A Sangue Frio, livro que já nasceu como sensação no ano de 1965 e que apresentou um novo formato para o jornalismo investigativo, além de consolidar o estilo jornalístico que tinha outras figuras de referência, tais como Tom Wolfe, Gay Talese e Norman Mailer, entre outros.

O fato é que o jornalismo cultural se beneficiou da quebra de paradigmas imposta pelo new journalism. Com a revolução de costumes empregada na contracultura ocidental dos anos 60, o próprio jornalismo seria contestado através de uma série de inovações estilísticas que seriam empregadas pelo new journalism e, em seguida, pela sua variação ainda mais radical: o gonzo journalism, estilo difundido pelo americano Hunter S. Thompson. Uma das principais características desse jornalismo ‘contracultural’ era trazer uma abordagem pessoal do autor sobre o fato descrito, sempre com doses maciças de ironia e humor.

Uma visão mais humanitária

Contudo, a presença de elementos de ironia e de humor em textos de jornalismo cultural era um recurso empregado pela imprensa americana desde o início do século 20. A crítica cultural de jornalistas como H. L. Mencken (1880-1956) e de Edmund Wilson (1895-1972) fizeram com que suas colunas fossem lidas pelo público que sempre esperava por textos elegantes e refinados, mas que não fugiam das polêmicas e críticas contundentes, conteúdo obrigatório no jornalismo cultural americano de revistas como a New Yorker, a ‘bíblia do novo jornalismo dos anos 60’, revista definida por Piza como: ‘capítulo obrigatório em qualquer história do jornalismo cultural’ (PIZA, 2003 p. 23). Nela, havia a medida certa para incisividade e humor, referência única para diversas outras publicações ao longo do século 20. Responsável pela revelação de grandes escritores, a New Yorker impulsionou o jornalismo literário, estilo jornalístico que permitia uma abordagem maior, com profundidade e investigação acerca de um determinado tema, adicionando elementos e recursos disponíveis na literatura. Tudo isso demonstrava o desejo de ir além da objetividade jornalística, parâmetro estabelecido pelo jornalismo moderno, que exigia a objetividade para a conquista da suposta imparcialidade, o que seria um fator preponderante para dividir o jornalismo ‘sério’ do sensacionalista, era apenas herança do positivismo e do espírito científico do século 19.

É nas páginas da New Yorker, e através desse jornalismo literário, que novas invenções estilísticas no ofício surgiram nos anos 60. A importância da revista New Yorker para o jornalismo moderno pode ser resumida na publicação dos capítulos do que seria o livro A Sangue Frio. O livro de Capote lançou as bases para a não-ficção moderna, cujas características de reportagem interpretativa e investigativa, com teor subjetivo e utilização de recursos da ficção como diálogos, a presença de vozes e atenção aos detalhes, é verificado com freqüência nas grandes reportagens que se tornaram livros de sucesso. Porém, Piza salienta que o jornalismo literário não é invenção da New Yorker, visto que este gênero vem desde os romancistas ingleses dos séculos 18 e 19, como Daniel Defoe e Charles Dickens (PIZA, 2003 p. 24).

Se a revista New Yorker popularizou com Capote a não ficção, a concorrente Esquire trouxe ao jornalismo literário um uso ainda maior das técnicas de ficção desenvolvidas por Tom Wolfe, Jimmy Breslin, Norman Mailer e Gay Talese, entre outros nomes do jornalismo americano, que seriam associados ao estilo new journalism. Estilo jornalístico que sofria a influência das transformações sociais que ocorriam no mundo. Como ressalta André Czarnobai (2003) em sua dissertação de conclusão de curso ‘Gonzo – o filho bastardo do New Journalism’, os jornalistas e escritores Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailler e Truman Capote são os principais expoentes da nova corrente que propõe mudanças drásticas no modo como se apura, redige e edita o fato noticioso, mantendo uma visão mais humanitária na sua abordagem, adotando uma postura contra os preceitos estabelecidos pelo jornalismo tradicional, que preconiza a necessidade da distância do narrador para o fato que relata com vistas à objetividade e imparcialidade. Piza destaca Tom Wolfe como o mais radical desses novos autores. Misturando a história verídica ao ritmo ficcional ele irá adicionar mais elementos que o distinguem dos outros jornalistas do new journalism.

A ‘burocratização’ do lead

‘(…) Sem ele, não haveria o jornalismo deslavadamente autoral de nomes como Hunter S. Thompson, o inventor do `gonzo journalism´ na revista Rolling Stone, cuja observação factual termina quase sempre em segundo plano diante do confessionalismo ébrio’ (PIZA, 2003 p. 27).

O que pode ser entendido como a evolução do new journalism, mesmo que seja considerado, por alguns autores como uma bizarra distorção, o gonzo journalism surge no final da década de 60 em plena efervescência da contracultura americana tornando-se a tradução perfeita de uma sociedade em convulsão, onde o próprio sonho americano acabava em delírios psicodélicos, bem como na utopia de uma revolução jovem.

É a partir dos anos 50 que o texto com narração e características literárias passa a contar com menos espaço na imprensa. O jornalismo de concisão e objetivo, de métodos como lead e a ‘pirâmide invertida’, representava a consolidação da imprensa que primava pela neutralidade determinando uma ‘obrigatoriedade’ na elaboração de textos. Com o intuito de atender demandas comerciais e redigir matérias que facilitassem a diagramação e a paginação, o lead, segundo Lage (1999) consiste numa ‘(…) proposição completa no sentido aristotélico, já que contém: o sujeito, um sintagma nominal; o predicado, ou seja, um sintagma verbal; e as circunstâncias ou sintagmas circunstanciais’ (LAGE, 1999, p. 31).

Essa estrutura de resumir a notícia no primeiro parágrafo e atrair o leitor para o resto da matéria surgiu também nos Estados Unidos em fins do século 19 e, segundo o Manual de Redação da Folha de S.Paulo, há dois tipos de lead: ‘o noticioso, que responde às questões principais em torno de um fato (o quê, quem, quando, como, onde, por quê), e o não-factual, que lança mão de outros recursos para chamar a atenção do leitor’ (Novo Manual de Redação da Folha de S.Paulo, 1996 p. 152). O problema nessa estrutura é que com o passar dos anos, passou-se a exigir (não explicitamente, mas indiretamente) que todos os seis elementos que compõe o lead estivessem presentes na abertura da matéria. Com isso, houve uma deterioração até do sentido original da palavra lead, que semanticamente em inglês quer dizer ‘liderar’, ‘conduzir’ e, hoje, serve apenas como um resumo da matéria no primeiro parágrafo. Rossi (1984) aponta para esse fato como um dos principais problemas resultantes de uma ‘burocratização’ do lead na construção de textos jornalísticos:

‘Da forma como o lead é encarado hoje, ele se transformou muito mais num resumo de toda a matéria, como se o leitor estivesse interessado apenas no início de cada notícia e não no seu conjunto. Diga-se que essa norma não escrita vigente nos jornais diários (em revista, até pelo seu caráter não diário, as normas são outras) se baseia não em pesquisas rigorosamente científicas sobre o comportamento do leitor diante da notícia, mas na impressão puramente empírica, de que ninguém, hoje, tem tempo de ler toda uma notícia de 50, 60 ou mais linhas – e, assim, se contenta apenas com as dez ou quinze linhas iniciais, que, por isso mesmo devem conter um resumo de toda a reportagem’ (ROSSI, 1984 p. 25 e 26).

Uma prisão narrativa

Gêneros como o new journalism e o gonzo possibilitam ir além das amarras dessa prática que, para atender à demanda industrial do jornalismo, conduziu a uma padronização da informação jornalística, fazendo com que a notícia pareça a mesma nos mais variados veículos, o que, segundo Rossi (1984, p. 26), fez com que o repórter e o redator trocassem o estilo pessoal para se transformarem em especialistas na técnica de redigir informações que respondessem às seis perguntas do lead.

Como herança do jornalismo literário, que tem como maior compromisso interpretar os fatos jornalísticos de forma integral e irrestrita e, retratar toda a subjetividade necessária à revelação do conteúdo objetivo, os novos gêneros, que surgem a partir dos anos 60, não desprezam as técnicas convencionais, nem os preceitos fundamentais para o ofício, como a apuração rigorosa dos fatos, abordagem ética e observação atenta a tudo que ocorre no contexto da situação que envolve o repórter, contudo essas normas são empregadas com melhor aproveitamento no texto, utilizando a narrativa literária como diferencial.

O new journalism potencializava os recursos da literatura para registrar sob o ângulo pessoal do repórter, o fato ou a história a ser contada. Porém, o termo ‘novo jornalismo’ já era empregado em 1887, mas de forma jocosa, como um insulto a um tipo de jornalismo irresponsável (PENA, 2006 p. 52). Nos anos 60, novamente será difundido o termo ‘novo jornalismo’, agora para classificar um estilo de reportagem que é reflexo de um período de turbulências sociais e culturais nos Estados Unidos e que também contava como influência às provocações estéticas na literatura provocada pelos autores beatniks, o New Journalism, em suma, era uma oportunidade para jornalistas como Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer, entre outros, escreverem romances realistas como os autores de gerações anteriores como Ernest Hemingway, William Faulkner, James Cain e John dos Passos. Os principais nomes do novo gênero jornalístico almejavam trazer para a imprensa um pouco da literatura antes que tivessem a oportunidade de escrever seus romances. Pena (2006 p.53) descreve que o nascimento do New Journalism ocorre pela insatisfação dos repórteres com o jornalismo tradicional.

O que vai proporcionar o advento do Novo Jornalismo contemporâneo na década de 60, nos Estados Unidos, é a insatisfação de muitos profissionais da imprensa com as regras de objetividade do texto jornalístico, expressas na famosa figura do lead, uma prisão narrativa que recomenda começar a matéria respondendo às perguntas básicas do leitor (PENA, 2006 p. 53).

Realidade, um discurso similar

Conforme Krette Júnior (2006) o gênero despontou nos Estados Unidos pelo período de contestação social não tendo um caráter inédito, mas sim parte da evolução do jornalismo literário ‘(…) uma vez que busca inspiração na literatura de realismo social e nas manifestações literárias de caráter informativo e factual, portanto jornalístico’ (KRETTE JÚNIOR, 2006). A publicação de reportagens de Tom Wolfe no ano de 1962, no jornal New York Tribune, consolidou o gênero nos Estados Unidos. Gay Talese é contemporâneo de Wolfe e, como ele, incorporou os recursos literários ao trabalho de captação e redação dos registros jornalísticos. O new journalism não era um movimento organizado, mas as reportagens tinham o mesmo desejo de transpor os limites impostos pela imprensa tradicional, oferecendo um tributo à literatura e deixando o jornalismo menos formal e mais atrativo. Para Wolfe, o estilo é evitar o aborrecido tom bege pálido dos relatórios que definia a suposta ‘imprensa objetiva’, por isso os repórteres devem seguir um caminho inverso adicionando mais subjetividade ao seu trabalho, deixando de ser uma ‘(…) encarnação de um chato de pensamento prosaico e escravo do manual de redação’.

O texto deve ter valor estético, valendo-se sempre de técnicas literárias. É possível abusar das interjeições, dos itálicos e da sucessão de pontuações. Uma exclamação, por exemplo, pode vir após uma interrogação para expressar uma pergunta incisiva. Por que não?! (PENA, 2006, p. 54).

O gênero new journalism rompeu fronteiras e influenciou novas publicações em diversos países. O Brasil foi um deles. Em 1966, a revista Realidade estreou trazendo a proposta de trabalhar em reportagens de cunho literário. Considerada como uma escola da reportagem moderna no país, a Realidade tinha um discurso similar ao do new journalism e buscava tornar-se uma alternativa ao jornalismo da imprensa diária. Ao abordar temas comportamentais polêmicos como uso de drogas, racismo, prostituição, violência, entre outros assuntos vistos como tabu, a revista foi um marco da imprensa brasileira em um período conturbado da história nacional.

Margem de liberdade

Mesmo sendo publicada durante a ditadura militar, a revista captou a efervescência daquele período onde movimentos de contestação social se multiplicavam em várias partes do mundo. Ousada e alternativa perante a mídia tradicional, a revista da Editora Abril tinha como foco a narrativa voltada à figura humana, em sua maioria personagens anônimos, assim com os dramas da sociedade e os temas conturbados que não eram encontrados nas páginas de outras revistas brasileiras.

Realidade tinha a preocupação de publicar reportagens investigativas tendo como principal influência os textos jornalísticos realizados pelos autores do new journalism. O estilo literário das reportagens de Realidade, bem como o posicionamento polêmico, presentes nos dois primeiros anos, quando ainda não havia a censura e repressão causada após o Ato Institucional n°5, o AI-5, é uma das principais contribuições da revista para um jornalismo inédito no país. Durante esse período, Realidade contará com reportagens de fôlego em uma narrativa voltada à literatura. A preocupação com as características literárias, em particular com um conteúdo de humanização do relato e a força de criar uma tensão na descrição subjetiva do contexto que narra ao leitor, partindo para a utilização de elementos de ficção, é um dos pontos similares da publicação com os textos do new journalism. Sato (2002) em trabalho sobre Realidade aponta que a publicação tentou alargar os limites da reportagem dirigindo-se de forma explícita para o ficcional.

Do período inicial da revista, destacaram-se como literárias reportagens cuja temática se concentrava em personagens anônimas, mas representativas: de atividades profissionais, de aspectos da vida nacional, de segmentos sociais, de visões de mundo, de valores e comportamentos. (SATO, 2002, p. 2).

O ‘algo mais’ de Realidade será, especialmente, o texto inovador e sua estrutura de não ter um padrão editorial idêntico ao de outras publicações. Realidade não seguia a padronização editorial de revistas como a Veja que é tão rigorosa que procura dar a impressão de que é escrita pela mesma pessoa da primeira à última página, em um modelo similar a de publicações como Time e Newsweek. Na mesma época em que surgiu a Realidade, o Jornal da Tarde também se notabilizava por dar ênfase ao chamado ‘lado humano’, procurando registrar o perfil de homens e mulheres envolvidos em um determinado acontecimento. O jornal alcançou picos de tiragem por ter rompido com as normas de estilo e de apresentação gráfica da época. Rossi (1984) entende que a função essencial de uma publicação não é apresentar textos de grande originalidade, mas simplesmente apresentar bons textos, com muita informação e exatidão, quanto às formas da apresentação desse texto, deve-se sempre ficar a critério dos repórteres e redatores.

Afinal, uma das melhores publicações de todo o mundo – o vespertino francês Le Monde – dá a seus repórteres tal margem de liberdade ao escrever que eles podem começar a narrativa de, por exemplo, um golpe de Estado na América Central pela descrição do nascer do sol no Caribe, sem que isso choque seus leitores. (ROSSI, 1984, p. 31)

Considerações finais

Meio século depois dos assassinatos na pequena cidade americana de Holcomb e mais de quarenta anos em que o estilo new journalism trouxe a literatura para descrever a realidade e também soar como contestação ao próprio ofício jornalístico, o estilo pode ser encontrado em diversas publicações e até mesmo presente nas novas mídias.

Se o new journalism trouxe uma nova forma de relatar de forma crítica a sociedade americana nos anos 60 e quebrar tabus em relação aos temas reportados, ele ainda é necessário em tempos de internet, isso porque tanto para o ofício jornalístico, quanto para os cursos de jornalismo, as reportagens ‘de fôlego’ do gênero fornecem novas perspectivas para o ‘fazer jornalismo’, bem como proporcionam um entendimento ainda maior dos nuances que formam uma sociedade, indo além das notícias ‘recortadas e coladas’ tão em voga no ciberespaço.

******

Jornalista, Bagé, RS