Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Muita coisa ainda está por ser dita

Essa espécie de ufanismo, em parte até justificável, em torno do etanol e da tecnologia brasileira pode dar aos jornalistas de hoje a oportunidade de redimir a omissão de alguns colegas que militavam décadas atrás, quando começaram os generosos financiamentos para as usinas de álcool. Verdade que, ali pelo começo da década de 1980, a imprensa se considerava amordaçada e ninguém ousava comentar ou discutir o encaminhamento de decisões governamentais.


A chamada ‘imprensa especializada’, mal ou bem, cumpriu, como ainda cumpre, sua enfadonha tarefa jornalística: medir o consumo, o desempenho, a economia dos motores a álcool. Mas as editorias de Economia, de Política ou de reportagens investigativas pouco fizeram, embora houvesse muito que discutir, como ainda há.


Uma das primeiras discussões que poderiam ser levantadas pela imprensa (embora hoje, cem anos depois, diante do fato consumado, possa ser meramente acadêmica) é a velha questão do transporte individual versus transporte coletivo. A situação, em boa parte das cidades do mundo e em particular das cidades brasileiras, é que o cidadão comum não consegue nem ir trabalhar se não tiver seu carrinho. O carro virou instrumento indispensável para ganhar a vida. Ninguém cuidou da infra-estrutura de transportes coletivos, urbanos ou intermunicipais. Falta de previsão ou preservação de interesses?


Poder calorífico


Uma outra questão é o etanol em si. É mesmo uma boa alternativa? Milhões de hectares para alimentar automóveis é uma boa solução planetária? E o carro elétrico, e o carro a hidrogênio?


Alguns tímidos artigos têm aparecido, em inglês, sobre as tendências que ocorreram nos Estados Unidos no começo do século 20, das quais nós, no Brasil, somos meros seguidores. Naquela época, nos Estados Unidos, um terço dos carros eram elétricos, um terço a vapor e o outro terço movido por motor a explosão. Já se sabia que nem só de petróleo viviam os motores: álcool e outros combustíveis de origem vegetal haviam sido testados. Havia baterias de longa duração e recordes de velocidade por carros elétricos. Neste endereço é possível encontrar informações preciosas.


Outros documentários têm mostrado como cidades e estados americanos tentaram resistir às pressões para acabar com bondes elétricos, trens elétricos e outros meios de transporte, mas terminaram por ceder ao poder da dupla ‘oil guys – car guys’. Ou seja, a história de países pobres que abriram os portões para as sete irmãs do petróleo (como si dizia na época) começou lá dentro dos Estados Unidos. A famosa ‘opção rodoviária’ ocorrida no Brasil – em detrimento do transporte ferroviário, muito mais econômico em distâncias continentais como as nossas – já fazia parte de um processo em andamento.


Outros temas que deveriam chamar a atenção da imprensa estão diretamente relacionados com o Brasil. O desenvolvimento do motor a álcool representou uma revolução tecnológica? Os técnicos poderão dizer com mais precisão, mas o que houve parece ter sido apenas uma adaptação ao assim chamado poder calorífico do álcool. O motor é o mesmo.


Aquecimento global


Dizia-se, na época, que a indústria automobilística resistia à idéia. Se for verdade, foi uma resistência débil, pouco mais que jogo de cena. O fato é que, em tempo recorde, engenheiros da Volkswagen e da Fiat tinham seus modelos prontinhos para rodar em Interlagos, 24 horas por dia durante 7 dias, em teste realizado pela revista Quatro Rodas. Aparentemente, o álcool não representava uma ameaça ao ‘sistema’; ao contrário, ajudava: já era possível obter motores flex, com pouco trabalho e pouco investimento.


A imprensa vive mencionando os interesses do presidente George W. Bush na indústria petrolífera e, ao que parece, ele não teve nenhum prurido em apaixonar-se pelo etanol. O álcool, em vez de atrapalhar, vem complementar a ordem vigente neste desperdício de energia que assola o planeta.


Mais coisas podem ser investigadas. Naquele tempo, dizia-se à boca pequena que a maior parte dos financiamentos baratos do Proálcool não era usada para a construção de usinas, mas em proveito próprio. Só que a imprensa nada podia falar. Agora, a posição do Brasil como produtor de etanol é, de fato, privilegiada e pode trazer um novo fluxo de financiamentos, em muitas áreas.


Mesmo que o etanol não represente uma solução para os problemas de aquecimento global, pode ajudar a resolver alguns problemas Brasil. E, desta vez, a imprensa pode e deve acompanhar tudo o que a acontecer. Os fatos, os contextos e seus desdobramentos.

******

Jornalista