Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Muita marola, pouca informação

Surpresa. Essa foi a palavra mais comum entre os que comentaram, para os jornais, a decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de impedir a concretização da venda da Chocolates Garoto para a multinacional suíça Nestlé. Poeira baixada, alguns governistas criticaram a lentidão da decisão. O presidente da Assembléia Legislativa capixaba, que se manteve quieto, embora suas bases eleitorais sejam em Vila Velha, criticou a lerdeza do Cade. O ministro Luiz Fernando Furlan, do Desenvolvimento, também questionou a velocidade do processo decisório.


Nesses dois anos, muito poucos arriscaram contar o que se passava. Os jornalões preferiam a quietude, assim como a imprensa regional. À medida que se aproximavam os dias decisivos, quem quisesse informação com alguma qualidade precisava buscá-la nos jornais de economia. Coisa de 15 dias antes da decisão, Valor Econômico ofereceu aos seus leitores uma página inteira bem pesada, em todos os sentidos. Metade da página era ocupada pelos argumentos da Nestlé. A outra metade oferecia os argumentos da Kraft, também multinacional, detentora dos direitos da velha Lacta. O jornal dava pesos iguais às forças em disputa e não ousava antecipar resultados. Quem viu esta página não pode alegar surpresa.


Os jornais deveriam correr atrás do que se passava. Mesmo depois da decisão, pouco buscaram entender o que era o Cade, como funcionava, como trabalhavam seus conselheiros. Registro indispensável: a IstoÉ Dinheiro foi a única publicação que mostrou, de forma clara e aberta, o movimento e as pressões dos lobbies que se articularam em função da venda – e quem estava em cada lobby. Até o insuspeito Frei Betto, assessor especial do presidente Lula e um dos formuladores do Fome Zero, aparecia voando de jatinho para participar de eventos patrocinados pela Kraft, lado a lado com o conselheiro e ex-presidente Gesner de Oliveira.


Fora do comando


A imprensa capixaba não fez nenhum gol de placa, mas comportou-se bem, depois da polêmica decisão. Acompanhou os movimentos do governo e das forças políticas locais, mostrou a apreensão dos funcionários, colou em Ivan Zurita, presidente da Nestlé, quando este chegou ao Espírito Santo e foi conversar com os funcionários em assembléia. O interesse resultou em boas fotos que foram para o alto da primeira página dos jornais locais e de jornais nacionais, como a Folha.


Mesmo assim, algumas diferenças fundamentais entre este processo e outros que o antecederam foram tratados sem a devida diferenciação. A principal: a Ambev foi criada como um movimento oriundo das grandes cervejarias brasileiras que optaram por unir forças. O Cade aprovou, mas obrigou que vendessem algumas marcas e fez outras restrições. A Colgate-Palmolive abocanhou a Kolynos; o Cade aprovou, mas a marca Kolynos foi abolida por quatro anos. O prazo já venceu, ela não voltou e ninguém explicou direito o que aconteceu. A Varig e a TAM mantêm operações conjuntas e a fusão anda, recua, anda, recua mas não amarrota. Nem chegou ao Cade, mas ninguém desconhece o estímulo oficial do governo.


No caso da Garoto, quem deu, não deu o devido destaque. A Garoto não foi o resultado de um processo de fusão movido por razões de mercado. Tudo começou em 1997, com uma crise de acionistas – ou crise familiar, o que não é muito raro numa empresa familiar. Helmut Meyerfreund, que tocava a Chocolates Garoto fundada por seu pai, detinha 49% das ações da empresa. As demais estavam majoritariamente com outros membros da família. A imprensa regional destacou bem, mas agora não recordou como devia, que Helmut fazia todos os movimentos para passar a empresa a seu filho, Victor Meyerfreund, um jovem que vinha se preparando para dirigir a empresa do pai. A surpresa se deu em 1998, quando Paulo Meyerfreund, conseguiu unir os dispersos 51% e destituir Helmut do comando da empresa.


Como funciona?


Foi em decorrência desta crise familiar – e não de qualquer movimento das grandes do mercado de chocolates no Brasil – que a Chocolates Garoto foi colocada à venda. Em entrevista à rádio CBN Vitória na segunda-feira (9/2) – este texto foi concluído às 10h do dia seguinte –, Helmut falou clara e abertamente da sua mágoa com familiares e outros que produziram a crise na empresa. E confirmou a força do lobby da Kraft, controladora da Lacta.


Decidido a desfazer-se da empresa, a operação cercou-se dos maiores cuidados. Tanto que conseguiram da Nestlé um valor de 250 milhões de dólares, bem acima do valor efetivo dos ativos da empresa. A marca, a empresa, a presença no mercado, tudo agregava valor.


O governo capixaba moveu-se com desenvoltura e mostrou-se um agente decisivo no processo, apesar de o governador estar hospitalizado, depois de ter retirado um rim com um nódulo de baixa malignidade. O vice-governador Lelo Coimbra moveu-se bem e apareceu como um parceiro sério dos interesses locais.


A Nestlé aguardou dois anos, mas previa investimentos na fábrica Garoto e a instalação de uma fábrica de café solúvel no norte do Espírito Santo. Investimentos não desprezíveis, suspensos diante da decisão do Cade.


De todo modo, a deliberação foi tomada por um expressivo 5 x 1 – e este único voto foi do conselheiro presidente do órgão, João Grandino Rosas, que falou em ‘inconstitucionalidade’ da decisão no Globo (7/2) e ganhou a entrevista principal da semanal Época.


O fato é que ninguém conhece a história o suficiente, porque a imprensa não chegou a contar. Mesmo quem tentou acompanhar tudo não tinha um quadro claro.


Até hoje, o leitor não sabe como funciona o Cade, como são escolhidos seus conselheiros, qual o seu poder etc. Sabe-se que neste ano o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos vai promover a renovação dos conselheiros. E mais nada.