Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Muito Beckham, pouca Rocinha

O telejornal é o fast food da notícia. E por isso mesmo é útil, porque nos abastece de maneira rápida sobre os acontecimentos. É nas revistas semanais de atualidades que o público se aprofunda nos fatos e seus desdobramentos, os porquês, as conseqüências. As matérias das revistas semanais ajudam a entender melhor a sociedade na qual vivemos e a suas relações com outras sociedades. A Carta Capital tem conseguido cumprir bem a sua função e é por isso mesmo que algumas considerações devem ser feitas a respeito da edição nº 287.

Na semana passada dois fatos preencheram o tempo e as páginas dos noticiários diários: no plano internacional, o recrudescimento da guerra no Iraque e, na nossa terra Brasil, o recrudescimento da guerra no Rio de Janeiro. Para o primeiro, a cobertura da Carta seguiu a regra já definida no primeiro parágrafo desse texto. Mas, para a segunda, tivemos uma cobertura lamentável, quase telegráfica ou burocrática. Embora tenha apresentado dados relevantes, como os números do IBGE sobre a violência no Brasil ou a comparação estatística da situação do Rio de Janeiro e de São Paulo, a matéria deixou de abordar aspectos relevantes para a compreensão da situação.

Começando pela definição da Rocinha como favela. Uma comunidade com uma população superior à de muitas cidades brasileiras, 200 mil habitantes, com agências bancárias, escolas, comércio estabelecido e demais equipamentos sociais ainda pode ser chamada de favela? Já não estaria na categoria de bairro? O que diferencia uma favela de um bairro? A revista poderia ter ouvido cientistas sociais, arquitetos, ONGs que atuam nessas comunidades e os próprios moradores. Sabemos o peso e o sentido que a palavra favela desperta. E quando questiono a utilização do termo penso na imensa maioria da população que ali reside e que não tem com o tráfico de drogas relacionamento maior do que qualquer pessoa que more em qualquer outro lugar desse país, seja São Paulo, Recife ou Natal.

Simples descrição

À matéria faltou apontar o que representam para a comunidade os personagens que desencadearam a guerra, de que forma e qual é o tipo de liderança que eles exercem, por que houve manifestações no enterro de Lulu ou por que o comércio e as escolas cerraram as portas. Enfim, utilizando quase exclusivamente dados de gabinete, a matéria não ajudou a conhecer esse fato por dentro, pelo olhar de quem está vivenciando o problema de perto.

Em termos de estatísticas, a matéria afirmou que no Brasil quase 50 mil pessoas são assassinadas por ano, de acordo com o Segundo Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil. Faltou, entretanto, apontar qual é a instituição que produz esse relatório, quando ele foi produzido, se tem servido como fonte para fundamentar políticas públicas. O número de mortes por homicídio no Brasil, que oficialmente não vive em guerra, poderia ser relacionado aos números de outras guerras, como a do Iraque ou a dos palestinos e israelenses, ajudando a entender que o ‘oficial’ nem sempre corresponde ao ‘real’.

Enquanto a matéria sobre a guerra no Rio de Janeiro ocupou duas páginas daquela edição, a matéria sobre os possíveis casos extra-conjugais do jogador inglês David Beckham ocupou três. Embora se reconheça que a vida pessoal dos famosos desperte o interesse do público, tema que mereceu atenção deste OI, a vida sexual do símbolo metrossexual do homem pós-moderno não tem importância suficiente para merecer tão grande repercussão. Tal cobertura só se justificaria se a vida pessoal do personagem da notícia tivesse desdobramentos sobre a vida de uma comunidade ou de um país, como um candidato à presidência, por exemplo. Ou então se o fato ilustrasse uma matéria sobre mudanças de comportamento ou as contradições entre a moral e a conduta de uma determinada sociedade. A cobertura do(s) caso(s) (de) Beckham não entrou por qualquer desses caminhos e se limitou à simples descrição.

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Jornalista, Natal (RN)