No embalo da divulgação de que, entre janeiro e agosto deste ano, a
circulação dos diários brasileiros cresceu 4,7% e que a cada mês, desde março de
2004, eles vêm vendendo sempre mais do que no mesmo mês do ano anterior, a
Associação Nacional de Jornais (ANJ) deu uma notícia velha – em matéria de
credibilidade, o produto só perde para os médicos e as Forças Armadas.
Trata-se do resultado de uma pesquisa do Ibope – de maio passado – sobre a
confiança dos brasileiros nas instituições (e grupos sociais ou profissionais).
Oitenta e cinco por cento dos entrevistados disseram confiar nos médicos; 75%,
nas Forças Armadas; e 74%, nos jornais.
Na época, o ombudsman da Folha de S.Paulo, Marcelo Beraba,
confessou-se surpreso na sua coluna semanal com a avaliação positiva dos diários
(bem maior do que a do rádio, com 64%, e da TV, com 61%). ‘Para mim’, escreveu
Beraba em 5/6, ‘é visível que a crise financeira que se abateu sobre as
principais redações afetou a qualidade final de seus produtos.’
Seja como for, é oportuno – paradoxalmente – a ANJ bater o bumbo sobre a boa
imagem do meio de comunicação do qual os seus sócios são donos.
Oportuno porque foi em maio que começaram a rebentar as denúncias de
corrupção envolvendo o PT e o governo – e é legítimo supor que o tiroteio de
acusações e negações que passou a dominar o noticiário nacional a partir de
então deve ter influído na percepção do público sobre o papel da mídia em geral
e do jornal em particular no curso da crise.
Salvo melhor juízo, a única indicação a respeito, também divulgada pela ANJ,
vem de uma segunda pesquisa do Ibope, esta de agosto, citada na Folha
(sexta, 2/12) e no Globo do dia seguinte.
Conforme uma sondagem com duas mil pessoas, 40% das quais declararam se
interessar por notícias e se informar por meio de jornais, o leitor diário é
tido, em partes aproximadamente iguais, como tendo mais consciência política
(25%) ou menos (28%) do que os outros brasileiros. [Já o leitor esporádico teria
menor consciência política (30%) e social (45%).]
É muito pouco para saber o que a crise fez com a credibilidade da imprensa,
diária ou não. Uma hipótese que ocorre a este leitor é que ela diminuiu – e,
mais importante do que isso, não necessariamente, ou não exclusivamente, por
suas eventuais culpas.
Um par de teorias conspiratórias
A idéia deriva da leitura regular de comentários a textos publicados em blogs
políticos, como o do jornalista Ricardo Noblat, e em blogs de crítica de mídia,
como os deste Observatório da Imprensa, entre os quais o de
responsabilidade do autor deste texto.
Os ataques à imprensa superam de longe – em número e em veemência – os
elogios que lhe são destinados. Os leitores que simpatizam com o presidente Lula
e o PT, e mesmo uma parcela daqueles que dizem não ser nem lulistas nem
petistas, cobrem a mídia de impropérios.
Fazem-no a qualquer pretexto. Ou sem nenhum.
Nada de surpreendente aí – nem esse é o ponto de apoio da hipótese acima.
Desde as primeiras apurações das denúncias do mensalão, quando no PT ainda se
falava em ‘refundação’ e Lula se dizia ‘traído’, sem citar nomes, começaram a
ganhar corpo duas teorias conspiratórias atingindo a imprensa.
Para a primeira, a mais radical, as denúncias eram (ou são) uma fabricação da
direita e da mídia – inseparáveis uma da outra – para destruir o Partido dos
Trabalhadores e o governo do presidente Lula.
Para segunda, um tantinho menos radical, as denúncias eram (ou são) uma
exploração, sempre com tais objetivos, de ‘erros’ cometidos, por uns poucos
dirigentes partidários – a rigor, por um único membro da cúpula da agremiação,
Delúbio Soares, quando seu tesoureiro.
E os ‘erros’ nada mais seriam do que aqueles que Lula disse que se fazem
‘sistematicamente’ na política brasileira – ter um caixa 2 eleitoral, ou, na
nomenclatura oficial, ‘recursos não contabilizados’.
Enquanto não se fizer uma análise empírica do que a mídia deu (e como) e
deixou de dar ao longo da crise ficará difícil dizer, sem disparar
generalizações a esmo, em que medida tais versões correspondem aos fatos.
Decerto órgãos de mídia maltrataram deliberadamente a verdade para
desmoralizar o PT e o governo. Os leitores críticos citam quase unanimemente a
revista Veja e o seu colunista Diego Mainardi e não se dirá, dizendo o
mínimo, que estão vendo fantasmas.
[Para dois exemplos, ver os artigos ‘Alma
de dedo-duro‘, no blog ‘Em cima da mídia’, de 3/12; e ‘O macartismo mainardiano em ação‘, de 5/12, ambos neste
Observatório.]
Mas é implausível que a grande imprensa mereça, indistintamente e a cada
lance da crise, o xingatório de que é alvo.
O descrédito da mídia junto a esses leitores pode ter outra causa, exclusiva
ou não: a cada vez mais acentuada polarização política da opinião pública. É
sintomático que a proporção de brasileiros que aprovam o presidente Lula é mais
ou menos a mesma dos que o rejeitam.
Quanto mais uma sociedade se divide – seja a propósito do que for –, mais
aumenta o rancor de parte a parte e mais cada lado tende a enxergar a imprensa
como aliada ou instrumento da outra.
A evidência mais recente disso são obviamente os Estados Unidos. Ali, antes
ainda da primeira eleição de Bush, a direita se entregou a acusar a mídia de
‘viés liberal’, enquanto a esquerda denunciava a transformação de órgãos de
comunicação em veículos de propaganda da ‘revolução conservadora’ que tomou
conta do Partido Republicano – e não só.
Depois, com o crescimento exponencial da blogosfera, a mídia passou a apanhar
feito gente grande – sem parar e de todos os lados.
Perdendo o equilíbrio
No Brasil, é bem verdade, a mídia não se divide por igual, nem por nada
parecido com isso, em relação ao governo. Excluída a política econômica, raros
são os editoriais que o elogiam. Logo, o contingente de leitores furiosos com a
imprensa por alegadamente distorcer a realidade a fim de prejudicar o PT e Lula
é muitas vezes maior do que o dos enraivecidos pelo motivo oposto.
Mas, a julgar pelo tom agressivo de um número desalentadoramente grande de
manifestações e fantasias conspiratórias (notícias as mais inócuas são citadas
como indícios de golpismo), uma parte do leitorado parece ter perdido a aptidão
para julgar a mídia com um mínimo de equilíbrio.
Dito de outro modo, tem-se a impressão de que essas reações iracundas são
desproporcionais ao que possa haver de faccioso e desonesto na cobertura da
crise. E assim é porque o alvo último dos indignados, a favor ou contra o
governo, são os que não pensam como eles.
É quase inevitável – para não dizer impossível – que a credibilidade da
imprensa não acabe contaminada por esse clima de antagonismos exacerbados, ainda
que a sua própria contribuição para isso seja menor do que os seus detratores
presumem.
E a campanha de 2006 – que corre o risco de ser um replay da barra pesada de
1989 – ainda nem começou oficialmente. [Texto fechado às 14h40 de 5/12]