Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Na mesma tecla, 38 anos depois

Curiosamente, o filme perdedor do Oscar para Rocky, o Lutador, Todos os Homens do Presidente, começa (establishment shot) com uma tecla de máquina de escrever e os tipos ‘batendo’ a data 1º de junho (quando se comemora, equivocadamente, o começo da imprensa brasileira) de 1972, dia em que o ex-presidente Nixon retornava da China para os Estados Unidos. Duas semanas depois, o escândalo de Watergate eclodia e levaria os autores da massiva investigação jornalística a ganharem o Pulitzer, fama e a recorrente demanda por suas opiniões, tanto sobre a histórica reportagem, quanto a respeito da cobertura dos corredores da presidência dos Estados Unidos.


Talvez, batendo na mesma tecla, queiramos aprender com eles (repórteres e presidentes americanos) como se fazem e não se fazem as coisas. Isso abre uma janela para outra discussão, mas, de fato, é sempre bom ler e ouvir esses personagens.


Carl Bernstein vem ao Brasil para palestra na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, parte de um seminário sobre ‘Liberdade de Expressão’ (03/05/2010). Bob Woodward neste último dia 17 de abril falou para uma platéia, curiosamente também, para convidados da Associação de Advogados de Responsabilidade Profissional reunidos em New Orleans, EUA.


‘Como garantir a prática do `bom jornalismo´?’


Aqui, Bernstein repetirá sua visão de jornalismo investigativo enfatizando que o jornalista deve ouvir, ouvir e ouvir, e fugirá de todas as perguntas que o remeterem a outro tempo, especialmente ao futuro. Para o homem atrapalhado representado naquele filme por Dustin Hoffman, tudo tem que ser colocado à luz da realidade factual e do seu tempo. Por exemplo, perguntado por um entrevistador americano sobre como ele prevê a atuação da sra. Hillary Clinton ao lado do primeiro presidente afro-americano, ele dispara que não é especialista em previsão, o seu negócio é contar o que já aconteceu.


Cobrir um jogo de futebol, nem pensar, para o Bernstein, teria que contar o que está acontecendo, não dá tempo de apurar… Deduzo.


Apura e conta, de fato, tudo o que aconteceu na vida da sra. Clinton, numa biografia não autorizada, The Woman in Charge (sem tradução ainda no Brasil), por exemplo, que uma fonte próxima do casal presenciara briga verbal e gestual feia dela com o então presidente Clinton que, de repente, abraçou-a com voracidade, num jardim de frente para o mar (épico!) e cobriu-lhe de beijos o rosto, a boca, o pescoço, em seguida gritando para o alto: ‘Deus, o que eu faria sem você?’ O livro, em grande extensão, define a sra. Clinton como uma pessoa obcecada pela verdade ainda que não tenha conseguido em sua vida pública praticá-la. Esta mesma senhora, enquanto este observador escreve, lida com um dos problemas mais sérios do planeta, os conflitos armados entre países.


Lendo e ouvindo vários depoimentos de Bernstein, muitos conselhos simples que ele repetidamente dá, ao responder tanto sobre o Watergate quanto sobre cenários político-jornalísticos atuais, sempre serão plausíveis e momentosos. Alguns foram repetidos para Marília Martins, correspondente de O Globo em Nova York, em entrevista publicada recentemente: ‘Punir maus jornalistas? Como um conselho poderia garantir a prática do `bom jornalismo´?’ Respondeu com perguntas, mas, embora ele tenha fama de perguntador, foi retórico e a repórter deixa parecer que é a favor do conselho ao explicar-se: ‘Bem, a proposta é que o conselho poderia estabelecer punições como cassar o direito de exercer a profissão’; e ele diz: ‘Toda tentativa de controlar e cercear a liberdade de expressão e a imprensa livre é ruim.’


Contra os segredos dos governos


Se por um lado, parecem perguntas de estudante puxa-saco (cujas respostas dão a chance ao professor para matar o resto da aula), por outro é oportunidade imperdível de bater na mesma tecla que é preciso. Posto que o poder da imprensa está sempre na beira no abismo, correndo o risco de cerceamento, não custa repetir, repetir e repetir a importância do seu combustível essencial. Posto que o produto do jornalismo é a matéria publicada e, como diz o ditado, depois de leite derramado não adianta chorar, não custa repetir a importância dos predicados básicos do bom jornalismo: ética, apuração e continuidade (incluindo o direito de resposta), num meio cada vez mais infestado por quem não é do meio.


Há outro viés, porém, de que aquelas perguntas e respostas óbvias sejam factóides (no próprio jornalismo?) – cria-se o fato para falar dele. Seria um sintoma de que estamos perdendo nós mesmos a força de argumentação da defesa da liberdade de expressão? De que teremos que copiar eternamente como se faz e não se faz em outras arenas, do jornalismo, já que na da política temos doutores no assunto?


Enquanto isso, Robert Redford, quer dizer, Bob Woodward, com estilo diferente (mais comportado), obcecado pela idéia de que o governo está sempre escondendo algo, inicia sua palestra afirmando estar ‘preocupado com o que este governo cheio de segredos fará com a gente’, enfatizando que os cidadãos têm o direito de saber o que o governo, em todos os níveis, está a fim de fazer. Indo além, ao sugerir que os jornalistas deveriam ser o baluarte contra os segredos de governos.


Assessores de Nixon não falavam


Bem intenso à la Reford, o editor do Washington Post faz uma alusão a dois casos ora na mídia local (New Orleans) de pobreza de ética que segundo ele é uma praga de governo ao qual os leitores (eleitores?) se submetem.


Mas, em dia atípico de descontração, faz a platéia de advogados gargalhar com petecadas de efeito, como ao se mostrar espantado pelo fato de que parecia que os advogados da Casa Branca não faziam nada para defender Nixon daqueles crimes do caso Watergate; e o ex-presidente Bush, em seus últimos dias de governo, deixar outros tomar suas decisões importantes sobre a guerra.


Sobre advogados e ética, mais uma vez Bob verbalizou uma sugestão aparentemente ingênua, mas, recorrendo a uma tecla que deveria ser rebatida todos os dias: ao repassar as gravações de Nixon, conseguidas ao custo de uma aprovação do Congresso americano (incluindo partidários do próprio Nixon), utilizadas nas reportagens do Watergate, Woodward relembra que jamais ouviu a voz dos assessores do ex-presidente, ninguém parecia tentado a pelo menos discordar do chefe. E acrescenta: ‘Talvez fizesse uma grande diferença se alguém dissesse: `Pare. Pense sobre o que você está fazendo… Nós temos uma Constituição. Ela se aplica a você também´.’


Bem momentâneo à recente episódio em que nosso presidente bradou publicamente incomodado com as sentenças do tribunal da justiça eleitoral quanto aos seus delitos neste particular.


Rascunho da história


Bob e Carl, nem tão velhos como parece aquela saudosa reportagem que talvez povoe a nossa memória só porque foi replicada num grande filme com grandes atores, mas estigmatizados o suficiente para nos estimular a tornar cada vez mais remota a nossa história de falta de liberdade de expressão, e o ideal cada vez mais vivo de um jornalismo de alto nível – de menos arrivismo, de mais densidade e dedicação.


Nenhum dos dois mete a mão fundo, entretanto, na questão de que hoje em dia quem cerceia a liberdade de expressão na verdade não são nem tanto os governos, mas cotidianamente o capital, desde as redações de jornais até as marcas das prateleiras de tudo o que comemos, vestimos e utilizamos.


Numa entrevista, Bernstein repetiu uma frase de efeito, lembrando ao entrevistador que ‘jornalismo é o primeiro rascunho da história’. Na apresentação de Woodward, um advogado oriundo da Universidade de Yale repetiu o ditado e concluiu: ‘Este rapaz escreve um primeiro rascunho endiabrado e tanto.’


Terminando o interminável, pergunto: até quando estaríamos escrevendo um primeiro rascunho copiado da história batendo numa tecla só, ou na tecla errada? Lutemos.

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Escritor e jornalista, dirige a Clínica Literária