Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Na pele dos jornalistas

Viver no Brasil dá um certo cansaço para além do normal esgotamento físico que, em outro lugar do mundo, qualquer cidadão sente quando submetido a radical esforço. No Brasil, porém, a essa situação comum, outra se soma: a fadiga existencial. Já me explicarei do que se trata. Precisamente em 25/3/2005, portanto antes do auge da crise política brasileira, concluíra a escrita de longo ensaio (‘Retorno à brasilidade: confissões e fissuras’) para publicação na revista acadêmica da faculdade onde leciono. A auto-referência, com a permissão do leitor, se justifica em função do tema aqui em pauta, a título de sentimento de solidariedade a jornalistas encarregados de promoverem a cobertura política.

Os leitores que porventura (ou desventura) me acompanham bem sabem das críticas quase habituais por mim expostas, ao longo de centena de artigos, tanto neste Observatório quanto em outras fontes, no tocante ao desempenho da comunicação entre nós. Conseqüentemente, está descartada qualquer possibilidade de defesa suspeita. Assim, volto a afirmar: um bom caminho para quem se entregue à penosa tarefa de compreender o Brasil sugiro que inicie pela compreensão da diferença entre o esgotamento físico e fadiga existencial.

Para não furtar de mínima orientação, sinalizo o princípio que separa o primeiro do segundo. Enquanto o esgotamento físico decorre de quem sacrifica o corpo e poupa a mente, a fadiga existencial acomete aquele que, pelo que faz, menos exige do esforço corpóreo para sobrecarregar a mente, solicitada todo o tempo para o exercício reflexivo demandado pelo estado de criticidade.

Além do suportável

Como desempenhar a função de jornalista político no quadro em que se apresenta a atual realidade brasileira, sem viver diariamente sob estresse? Não há expediente possível, capaz de, pela sucessão ininterrupta de casos, permitir que profissionais da imprensa acompanhem, com equilíbrio e eficiência de informação, os diferentes desdobramentos da crise, seja pela falta de recursos humanos e técnicos, seja pela absoluta exigüidade de tempo. Por sua vez, a população, ante tanta lameira, só não irrompeu em revolta generalizada porque, diferentemente do que a própria mídia vem difundindo, a maior parte do público está dedicando aos escândalos bem menos intensidade do que se supõe.

Está correta a constatação que a jornalista Marinilda Carvalho registrou em artigo no OI, ao demonstrar que jornais e revistas não têm aumentado suas vendas por conta de matérias ‘explosivas’, ora verídicas, ora infundadas [remissão abaixo]. Em reforço à constatação, cabe assinalar que:

1. em razão de variadas outras ofertas, a exemplo de ‘blogs’ e portais de informação propiciados pela internet;

2. em face de certo ar de desconfiança quanto à seriedade com a qual a classe política e as instâncias jurídicas estão conduzindo os desdobramentos das denúncias, não é de estranhar a resposta que a população destina ao padrão jornalístico dominante.

Por outro lado, também relativize-se a importância tanto da internet quanto das transmissões das ‘CPIs-show’. Afinal de contas, a maior parte da população sequer é usuária dos recursos da informática e quanto às transmissões (‘em tempo real’ – já não agüento mais ouvir essa boba expressão) televisivas, igualmente lembremo-nos de que a TV aberta se faz radicalmente ausente, bem como os horários de exibição são incompatíveis com quem trabalha e, por maior que seja, o índice de desempregados é ainda infinitamente maior o número de trabalhadores. Em caso contrário, a vida no Brasil já haveria implodido.

Sobrevém ainda outro fator para contribuir com alheamento e este decorre do efeito contrário gerado pela profusão de fatos. É tamanha a avalanche de denúncias e de envolvidos que a população média cria uma espécie de ‘blindagem psíquica’. À máxima informação segue-se mínima retenção, o que propicia embaralhamento de dados e, por fim, aturdimento acompanhado de alheamento. O cidadão comum, se for submetido a teste de memória, revelará acentuado grau de confusão mental. O que ele filtra é a sensação de estar num país atolado em roubalheira.

Há uma razão para os comentários anteriores, atinentes ao comportamento majoritário da população. Algo de extremada gravidade vem ocorrendo no país, sem que os próprios meios de comunicação para tal atentem. Refiro-me à sucessão de desmandos que, em nome das regras da democracia, se aproximam de um perigoso regime de atmosfera fascista (ou, pelo menos, antidemocrática) com a cumplicidade, involuntária ou não, de parte do sistema midiático – o que procurarei, a seguir, analisar.

O processo alucinante de investigações, depoimentos e denúncias é de tamanha ordem que sentenciamentos vêm sendo oficializados sob o pretexto de que a população quer respostas urgentes. Para tanto, execuções sumárias atropelam a sensatez, a argumentação e a comprovação.

Primeiro, é bom frisar que não pairam dúvidas (maiores ou menores) sobre o perfil das figuras até então penalizadas. Em seguida, porém, há de se observar se os procedimentos adotados estão em conformidade com as leis e com a real verdade dos fatos, sob pena de, em assim não sendo, estar-se autenticando práticas de um tempo sombrio da vida brasileira.

Será, por exemplo, lícito um jornal abrir primeira página com a seguinte manchete: ‘Severino: renúncia ou cassação’ (O Globo, quinta-feira, 15/9)? Creio seja legítimo como editorial. É um direito do veículo. Não como ‘manchete-notícia’. Imprensa não é aparelho judiciário. Por essas e outras é que alguns se animam em tentar criar mecanismos de limitação da ação jornalística, o que efetivamente não é desejável. Todavia, na contrapartida, a mesma imprensa não pode atribuir a si direitos que não tem. Informar, investigar, denunciar e apurar são atributos meritórios do inquestionável direito de a imprensa atuar. Não o é, porém, o direito de sentenciar.

Numa sociedade em que veículos de comunicação começam a julgar, abre-se caminho para sérias ameaças à democracia. Independentemente da simplória figura que, pelo voto, chegou à presidência da Câmara, há de se reconhecer que o tal cheque, por todos os dados e características, constitui fator juridicamente bastante frágil para justificar punições graves. Deixo claro que, a meu juízo, é lamentável aceitar, como terceiro posto mais importante da República, representante tão limitado e inexpressivo (sentimento, aliás, que se estende a inúmeros outros postos). Todavia, regra é regra. Não se trata de usurpação. O que se pode alegar é que se trata de uma espécie de ilegitimidade legal; portanto, não se podem admitir métodos típicos de regimes ditatoriais para expurgos.

Será que os meios de comunicação, mais interessados em sofregamente cobrirem os escândalos, não prestariam melhor serviço ao fortalecimento da democracia se se dedicassem, na atual conjuntura, a forçar debates sérios acerca de certos expedientes que nutrem a viciada modelagem da política no Brasil?

Para tanto, observaremos alguns aspectos. Em quantas democracias do Ocidente existe o estranho instrumento denominado ‘julgamento político’? Um colega de universidade, professor Drauzio Gonzaga, em meio a conversas, suscitou uma questão que, há tempo, já me inquietava: que critérios, afinal, orientam o tal ‘julgamento político’? Trata-se de pergunta extremamente séria. Tão séria quanto não menos sério e grave tem o instrumento em nome do qual se decreta supressão de mandato e exclusão por oito anos da vida pública. É, portanto, sobre tal ponto que julgo necessário lançar o foco, dado que, a depender da intervenção midiática, a questão parece não existir.

A mídia e o ‘tribunal de exceção’

Para efeito de isenção crítica, antes devo salientar que jamais destinei meu voto a nenhum dos aludidos. Ao contrário das tendências políticas que eles representam, sempre segui por outros caminhos. Então, o que aqui está em jogo não é defesa de ‘a’ nem de ‘b’. Trata-se apenas de intervir criticamente em nome de aspirar ao direito de, como cidadão, viver numa sociedade efetivamente democrática.

Será legítimo que parlamentares, na condição de meros representantes do eleitorado, detenham a prerrogativa de julgar e condenar? Como a população reage ao fato de um presidente ter sido cassado por corrupção e, anos após, consegue ser absolvido pelo poder judiciário na totalidade dos 112 processos nos quais foi alvo de acusação? Qual é a conclusão? Um presidente absolutamente inocente – a considerar a decisão do aparelho judiciário – foi executado sem comprovação, em nome do tal ‘julgamento político’.

Recentemente, outro deputado foi cassado sem que rigorosamente nada de ‘material’ pudesse ser alegado contra ele. ‘Faltou decoro parlamentar porque mentiu’ – disseram os acusadores. Mentiu em quê? A ‘poderosa corte’ declarou que não há ‘mensalão’. Só pode ser gaiatice ou esquizofrenia. Não é a mesma ‘poderosa corte’ que instalou a ‘CPI do mensalão’? A ‘CPI do mensalão’ não se encontra ainda em vigência? Sim. Então, como é que, em outra instância, mas com os mesmos participantes, condenou-se o deputado por mentir?

‘Não’ – dizem – ‘também confessou haver recebido dinheiro.’ Certo. O problema é que quem teria entregue disse nunca haver pago. Bem, então inexiste o delito. Apenas sobrevive uma mentira que o deputado cassado usou contra si mesmo, o que, por si, prejudicaria apenas sua própria imagem. No mais, tudo que pelo deputado cassado foi dito, confirmado está. A mídia acompanha e relata todos os acontecimentos. Contudo, a mídia mostra-se inteiramente omissa ou incapaz de problematizar questões dessa ordem, o que a torna cúmplice de degolas típicas dos ‘tribunais de exceção’, no melhor estilo das narrativas literária (O processo, de Kafka) e cinematográfica (A confissão, de Costa-Gavras).

Estarão os jornalistas míopes ou são vetos impostos por editores e/ou donos dos veículos de comunicação? Uma coisa é certa: o significado supremo da democracia está sendo alvo de deformação.

Estresse crescente

Outro tema que deixa a maioria da população perplexa é o critério para uso da ‘renúncia’. Nesse tal ‘julgamento político’, premia-se o delituoso renunciante e pune-se gravemente o corajoso e persistente em sua defesa. Assim, quem rouba e renuncia pode retornar na eleição seguinte. Quem é acusado de falta de decoro parlamentar e prossegue no processo finda por perda de mandato e impossibilitado por dois outros mais. Já imaginaram se o poder judiciário assim procedesse?

Pensemos: ‘x’ confessa que matou dezena de pessoas. Como confessou, será absolvido. Noutro caso, o tribunal prova que ‘x’ matou dezena de pessoas e, assim, decreta-lhe a pena máxima. Alguém, com mínima inteligência, pode considerar tal discrepância eticamente aceitável?

Há uma reforma política a caminho que, por sua vez, em razão da mesma pressa com que cassam, deverá ser votada a toque de caixa, distante de mínima consulta à população. Caberia à mídia pôr em debate aberto esses pontos, cuja origem se situa no obscurantismo das manobras e dos interesses corporativos do poder legislativo.

A propósito dessa questão, também aqui segue sugestão: por que não se inclui uma emenda constitucional, transferindo à Justiça Eleitoral (já que ela existe no Brasil, diferentemente de outros lugares do mundo) o encargo de formular reforma política, submetendo-a, em seguida, a referendo da população? Tal mudança libertaria a reforma do corporativismo de seus imediatos interessados.

Como se percebe, não são poucos os temas aos quais o jornalismo sério e atuante deveria destinar prioridade. A mídia precisa urgentemente descobrir que ainda existe inteligência ativa no Brasil, bem como reconhecer que não são poucos os jornalistas portadores de estresse, dada a obrigatoriedade de correrem desesperados a fim de levarem às redações matérias sobre o mais recente e grotesco fato.

A prova do estresse crescente se viu materializada pelo menos em duas ocorrências de arrepiar qualquer leitor familiarizado com a língua portuguesa. Duas constam na primeira página do Jornal do Brasil (quinta, 15/9): ‘Jefferson perde o mandato, atacando Lula’ (a vírgula antes do gerúndio deve estar vagando). Outra, ainda mais grave, na mesma página, continha a seguinte redação: ‘(…) Ele alega ter usado a verba para cobrir despesas de campanha do filho morto’ (será que o filho de Severino concorreu às eleições após haver morrido?). A terceira provém da Folha de S.Paulo‘ (sexta, 16/9). Em letras destacadas, a manchete oferece: ‘MP liga Celso Daniel à esquema de corrupção’. Deduz-se que, pelo acento grave antes de ‘esquema’, deve indicar a gravidade da corrupção.

Como se vê, o estresse dos jornalistas está para além do suportável. Ainda há tempo para mudar… Será?

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro)