Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Na rota do pior dos tempos

Diante de fatos noticiados ao longo da última semana, optei por romper o hábito de colaborador quinzenal deste Observatório, o que explica, para sacrifício dos leitores, o presente artigo. Curiosamente, dias após a publicação, aqui, do artigo ‘Ética e mídia acrítica’ [ver remissão abaixo], no qual, ao lado de outros dois acontecimentos, citava criticamente o modo como a prática jornalística vinha tratando o seqüestro, no Iraque, do engenheiro brasileiro e, em outro caso, a indiferença da mídia brasileira quanto à declaração de Pascal Lamy a respeito de sua proposta de ‘gestão coletiva para a Amazônia’, surgiram tanto nos portais online do iG quanto do UOL matérias, e, em seguida, nos jornais, em que, sob reforço do Itamaraty, dão conta da provável morte de João José de Vasconcellos Jr.

Igual se deu com a questão da Amazônia, a exemplo do programa Sem Fronteiras, exibido na Globo News, na quinta-feira (3/3/05). Neste, o teor consistia em minimizar o discurso de Lamy, afastando qualquer ameaça de presente ou futura ocupação.

É óbvio que tudo não passou de mera sintonia de coincidências. Seja como for, o Observatório, como ocorre tantas vezes com outros articulistas, firma sua dianteira, graças à sua finalidade maior: o exercício vigilante de um olhar crítico sobre os fatos e, principalmente, no tocante ao comportamento da mídia. Todavia, o que enseja este artigo é outra ocorrência: a libertação da jornalista italiana Giuliana Sgrena, em 4/3/05.

Em matéria de página inteira, sob o título ‘EUA abrem fogo contra refém libertada’ (Folha de S.Paulo, 5/3/05), assinada pela ‘Redação’, a alturas tantas consta o seguinte trecho sem aspas, cujo conteúdo teria sido extraído de uma declaração de fonte da Terceira Divisão de Infantaria do Exército, em Bagdá [grifos meus]:

‘(…) militares americanos afirmam que soldados dos EUA tentaram avisar os ocupantes do carro para que parassem, mas o veículo não diminuiu a velocidade. Eles então teriam atirado no motor, o que fez com que o carro parasse, causando a morte do agente‘. (sic)

É simplesmente inacreditável supor que um jornalista tenha redigido tal coisa: refiro-me ao período destacado. Atirar no motor, sem dúvida, causa a paralisação do carro. Porém, parar o carro ser a causa da morte é algo inimaginável. A menos que a intenção dos interceptadores fosse justamente esta: parar para executar. Todavia, nem de longe, a matéria fazia supor tal coisa.

Mundinho trivial

O episódio, em princípio tratado com tom insólito, entretanto foi drasticamente revertido com as declarações da jornalista. Primeiramente no Último Segundo, do iG [(http://ultimosegundo.ig.com.br), 6/3/05 – 7h15] e, mais tarde, no UOL (6/3/05 – 12h41), há o relato da jornalista libertada, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, sob o título de ‘Minha verdade’. Nele, além de afirmar que o engenheiro brasileiro está morto, dado antes divulgado pela agência italiana Ansa e referendado pelo serviço secreto italiano, também declara, segundo informações de seus próprios seqüestradores, que ‘os americanos não queriam que ela voltasse à Itália’, fato, porém, refutado pelo mesmo serviço secreto italiano.

Como se pode perceber, o mundo está regido por forças que escapam a qualquer tentativa de controle por parte da chamada ‘objetividade jornalística’. É verdade o que relata Giuliana Sgrena? Em não sendo, por que mentiria, numa situação tão perigosa? Ou ainda, o fato de ser absolutamente verdadeiro o que relata corresponderá à verdade por parte daqueles (seqüestradores) que tal informação lhe passaram?

Não há como definir-se por essa ou aquela versão. Para qualquer escolha, há uma lógica substantiva. Realmente, para os EUA, não é muito interessante que a jornalista tenha sido libertada. Afinal, a Itália mantém tropas no Iraque. A liberação da jornalista cria um impasse quanto à imagem (positiva/negativa) dos terroristas. Veja-se o problema: enquanto o Brasil declarou-se contrário à invasão no Iraque, tem um seqüestrado morto; o governo italiano, parceiro da invasão e da ocupação, desde a primeira hora, tem uma refém libertada, além de outros anteriormente.

Como equacionar-se a inversão? Como elucidar convincentemente o mapa das contradições? Seguramente, não o será pelo limitado atalho da informação.

Do emaranhado das situações, algo se conclui: estamos na rota do pior dos tempos, menos para aqueles que, ante o cenário horripilante, tanto multiplicam suas riquezas quanto ampliam seu prestígio político. Talvez, por conta de tantas tramas sujas e sangrentas, a mídia brasileira tenda a optar pelo trivial mundinho das celebridades e do banal espectro cotidiano no qual o reino da fofoca variada assegura suas pautas.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro